Ao cimo das escadas, o andor era solenemente enfeitado com a gordura condensada da fritura das rabanadas. O odor ameno a canela e açúcar amarelo, depois de embeber o cacete fatiado, adornava o resto do tecto que, por entre as marcas da humidade persistente, espreitava feliz para a estrela encimada na crista do petiz pinheiro de Natal. Resinoso ainda, adormecido entre os musgos arrancados com as mãos em fartos tufos às húmidas costas da pedreira, sacudia orgulhoso as luzes intermitentes que projectavam um firmamento iluminado do espectro visível de cada vez que se desligava a luz do candeeiro da sala, junto com pinhas e bolas de chocolate embrulhados no acetinado papel colorido, prateado, antecipando o adocicado travo na boca quando se deixa derreter o cacau com todo o tempo que a infância encerra.
Duas ou três travessas, atravessadas num canto da mesa da sala, sobre a toalha vermelha e branca, estampada com dóceis folhas de azevinho, jaziam profusas com temas natalícios polvilhados a canela, que se soltava como poeira estelar das pontas dos dedos da novel mãe cozinheira. O bolo rei mantinha o ar espantado, salpicado de frutos secos e corantes cristalizados num arco-íris bolboso, enquanto o queijo serrano esburacado no topo fazia de cratera num vulcão apaziguado, consigo e o leite de cabra.
Faltava pouco para a ceia de Natal. Os passos apressados tinham sido substituídos pelo caminhar de um lado para o outro no pequeno recinto a que chamavam casa e eu, inocente, gostava de chamar estábulo. Nunca o pouco fartou tanto como quando o nada que nos vestia não pesava o ego, e o sorriso que se cruzava connosco abria boas tardes e boas noites sinceras, sem comentários, votações, partilhas e discussões.
Quando a travessa soltara o seu fumo branco em cima da mesa e os talheres se aprumavam de lado do vidro temperado, alguns pratos tinham já um leito de azeite, alho, ovo cozido e sorrisos. Havia uma comunhão entre o ardor no peito, as calças de pijama, o menino Jesus que espreitava do presépio, a boca cheia de couve e a procura com a língua de uma espinha que se sentira num canto da boca. À medida que o prato se esvaziava, assim como a travessa aliviada do calor e do caldo da água das batatas e do bacalhau, o copo escorria-se num gole e tudo se encontrava de novo no ventre aquecido, restabelecido e feliz de uma ceia natalícia.
Assim que tudo se arrumara, lavara, secara e as mãos da cozinheira se embebiam no avental, também ele estampado num singelo motivo, despedindo-se do labor e prestes a entregar-se ao amor, cabeça no ombro do marido e pai, havia um tempo onde espreitando por entre o musgo, a magia descia do pisca-pisca do pinheiro e se colava ao nosso olhar de criança, sem nada haver a esperar, mesmo quando a idade avança. O silêncio dizia grande parte do que se ouvia enquanto a noite se digeria e o céu nocturno, escuro, pintalgado de estrelas ausentes, se debatia para encher de sonhos os mais inocentes.
Por arte mágica paternal, dentro da bota ortopédica surgia o que eu pedia (e a única coisa que na estreita chaminé cabia). A lanterna, já com pilhas necessárias e eu, ansioso, calado, com olhos húmidos, rasgando com cuidado o papel, abria a porta da cozinha voltada ao encantado arvoredo, sem qualquer frio ou medo, espreitava o pinheiro e o anjo (na verdade só lhe via a asa) e, fazia sinais para o céu, cheio de saudades de Casa.