Pedro Elias
on 12 September, 2022
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Excerto do Capítulo VII – A Maria - do livro "Memórias de um Despertar"
Na comunidade, a vida da Maria era simples e despojada. Sempre foi Um com todos, sem se diferenciar, sem ter tido, ou buscado, qualquer tipo de protagonismo, pelo menos até ao Grande Colapso, após o qual ela se deu a conhecer ao mundo e passou a ser procurada. Nunca se isolou, vivendo integrada nos ritmos normais da comunidade, participando das tarefas e das rotinas diárias, sempre de forma humilde e simples. Em criança era uma entre todas as outras crianças; na adolescência, já mais madura e consciente da sua tarefa, passou a ser vista pelos residentes como alguém especial, embora continuasse com a mesma postura humilde, despojada e silenciosa. Ninguém deixava aquela comunidade sem ser tocado por si, mesmo que não a encontrassem pessoalmente; e todos saíam transformados.
Lembro-me de uma vez em que fomos para a apanha da azeitona, os residentes e aqueles que nos visitavam. A Maria, como sempre fazia, juntou-se a nós, sendo apenas reconhecida por aqueles que viviam na comunidade. Fomos separados em grupos que eram formados por residentes e visitantes, e cada um ficou com uma parte do olival. No nosso grupo encontrava-se uma senhora, já nos seus cinquenta anos, que tinha vindo passar uns dias à comunidade e que ficou junto da Maria. E como ela falava! Ficou o dia todo a falar das suas desgraças, do mal que lhe tinham feito, das injustiças e maledicências a que fora sujeita, do rol de doenças que a atormentavam. As suas palavras estavam repletas de amargura, de ódio, de ressentimento. A Maria foi ouvindo tudo em silêncio. Nunca a interpelou, simplesmente ouvia de forma tranquila, sem julgar ou avaliar o que ela dizia. No fim da tarde, a senhora começou a mudar o discurso. No meio das coisas negativas começou a falar de outras positivas, dos momentos de alegria que teve, das viagens que fez e de que gostara muito, das comidas favoritas… percebia-se uma mudança, uma leveza começava a instalar-se, mas continuava a falar muito. No dia seguinte o grupo voltou a reunir-se para continuar aquela tarefa e a senhora nada falou. Passou o dia inteiro em silêncio, para espanto de todos, menos da Maria, que continuava a sua tarefa como se nada fosse. No fim daquele dia, não resisti e interpelei a senhora.
— Reparei que passou hoje o dia todo em silêncio. Ontem falou tanto, mas hoje nada disse. O que aconteceu?
Ela sorriu com um olhar iluminado.
— O que aconteceu não sei ao certo, mas hoje acordei e era uma pessoa nova. Foi tão estranho e ao mesmo tempo maravilhoso. Olhava para as coisas como se as visse pela primeira vez e um sentimento de encantamento tomou conta de mim, como uma criança de se deixa maravilhar pelo novo que conhece. Ontem falei sem parar e era como se me libertasse de toxinas antigas. Pude perceber que na verdade vivi toda a minha vida como se estivesse dentro de uma realidade virtual, presa nas memórias, boas ou más, não interessa, sem interagir com o mundo cá fora. Era como se fosse esta criança a jogar computador, presa na realidade do jogo, sem perceber a vida que lá fora a chamava para brincadeiras e descobertas. E sempre vivi como esta criança alienada, presa dentro das memórias como se os meus olhos estivessem virados para dentro da cabeça e não para fora, para o mundo, para a vida. Hoje, quando acordei, tinha, pela primeira vez, os olhos virados para fora, pude ver a vida em torno de mim, pude sentir as coisas, deleitar-me com elas. Foi realmente maravilhoso quando chegámos ao olival e pude contemplar as árvores repletas pelo orvalho matinal e a luz do sol reflectida neste… quando toquei as folhas e senti a textura, quando olhei pela primeira vez para as azeitonas que não tinha visto no dia anterior, mesmo tendo apanhado vários cestos, e observei-as nas suas diferentes tonalidades de verde-escuro e preto, quando, durante o almoço, me descalcei e senti a frescura do ribeiro nos meus pés, ao caminhar sobre os seixos redondos. E os sons, então, as cores, a Vida que nunca vi por ter vivido presa dentro da minha mente, julgando que as memórias eram a realidade enquanto a verdadeira vida cá fora era vivida de forma mecânica, sem me relacionar com esta, sem interagir verdadeiramente. Não sei o que aconteceu, ou como aconteceu, só sei que passei por uma cura profunda que fez despertar em mim o meu verdadeiro Ser.
E isto era o que a Maria fazia com as pessoas que nos visitavam. Sem se impor ou dar-se a conhecer, sem que estas sequer percebessem de onde tinha vindo essa cura, a Maria fazia despertar cada pessoa que com ela se cruzava para sua própria essência e fazia-o assim mesmo, de forma simples, discreta, sem procedimento ou rituais, sem buscar protagonismo, apenas absorta no seu imenso silêncio onde cada pessoa mergulhava como num baptismo. E todos os que ali chegavam passavam por esse baptismo e as suas vidas eram totalmente transformadas.
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