A tarde de sábado, com um vento frio, traz consigo a última saída de casa de um octogenário jovial, sorriso fácil, tracto doce. A aldeia, apesar de vila, habita-se ainda dos idosos que resistem, enraizados, ao soluçar da passagem do tempo, testemunhas que são de um progresso que trouxe comodidade ao corpo, mas vazio às pessoas. Somos todos o classificado algoritmado potencial cliente de algo. Quem nada compra, nada vale. E quem nada vale não tem valor. Há quem lhe chame solidão. Há quem lhe saboreie a dor.
O sobretudo negro pesa-lhe tanto nos ombros como as translações completas a um astro que o Homem habituou a respeitar. Cumprimenta-me com um acenar de cabeça. O sorriso quente que me aquece, debaixo do toldo do café, abrigado de mim mesmo. Dirige-se à montra do minimercado, por entre cartazes de festividades com horários para visitas filarmónicas e dos recentes “procuram-se trabalhadores”, uma folha timbrada, cinzenta, o logótipo de uma funerária, uma fotografia colorida, antiga, um nome encimando-a e, por baixo, entre parêntesis, a idade. Há um reconhecimento de fim de ciclo natural, o tradicional descanse em paz, o animado foi desta para melhor e o silenciado boa viagem de regresso a casa.
Volta costas e olha-me, há uma rua vazia entre nós, os buracos da incúria e desleixo desenham o relevo do que nos separa, várias décadas e um punhado de acenos amigáveis que me habituei a saborear. O vento corta-me a feição, o sorriso circunstancial não convence o final de tarde, cujo Sol poente mareja de alaranjadas sombras e inusitadas e rosadas nuvens tecem teias celestes, não vão os sonhos escapar. Neste olhar, quase tudo me foi dito. Um amigo que parte. O peso da idade e da perda sobre o tecido que o cobre abate o sobretudo cansado.
Sorri-me. Sorrio-lhe, sério. Encolhe os ombros e neste içar e abater de braços, feição, corpo, o próprio sorriso se esvai deixando o cumprimento para um resignado esgar cujo pensamento, se se pudesse escrever, diria “o próximo serei eu”.
Vejo-o entrar no jardim e, depois, ao esconder-se pela sombra da casa quase inabitada, um vulto conhecido, já partido, aconchega-lhe a gola do sobretudo ao pescoço. Um filho sabe sempre tratar dum pai.
O final da tarde traz o esbranquiçado fumo branco do fogão de lenha, apaga-se, o lume e o homem. Sei-o, porque mo disse, que é chegada a hora de se aquecer na cama, o fogão só lhe aquece para onde está virado, o cobertor fá-lo por todo o lado.
Não apenas os montes se afundam. O vento atiça os zimbros de um fogo gelado que consome mais do que a própria solidão. Imagino-o envolvido por um aconchegante molho de recordações de vida preenchida, quando me recordo da nossa conversa, eu na vida consolando-o o possível pela perda do filho e ele, sorridente, no jardim, “olha rapaz, também eu irei, quando Ele se lembrar de mim”.
(publicado originalmente em https://www.correiodoporto.pt/prioritario/dia-de-um-pai)
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- Ela está sozinha.
Foi a primeira frase da matriarca, ainda antes do proverbial bom dia, com que me deparei na sorumbática manhã de sábado, talhada pelos latires ansiosos do canídeo. O gato, senhor de si mesmo, chegou, viu e venceu, marcando o território, neste caso o celofane transparente que plastifica a protecção singela da ilharga do roupeiro. O cão, senhor de outros, fareja, segue-lhe os passos e as secreções, urinando com mais veemência. Ausculto o diálogo monologado da senhora, sexagenária tardia e mãe da cliente, onde a labuta universal de uma vida voltada à adversidade com um sorriso valia o epíteto de profissão. Aqui há os sardinheiros, os pedreiros, os charés, os presuntos e outros que esqueço agora, na sombria tarde de domingo, onde o ecrã do computador aquece o leito sobre mim mesmo, na camisola de lã cingida ao que me prende à vida (a qual me orgulho saber não existir). Os nomes de nada valem, embora se me colem ao palato como o copo afundado num Porto licoroso, rubi, cujo teor me confundirá, como sempre, nas vozes ausentes que se colam aos meus sentidos.
Depois de estacionar e descarregar a carga e a mim mesmo, estaciono e percorro a rampa empedrado que, resvalando-me, me levaria ao Paiva, não fosse a matinal sabedoria do sábado acautelando-me os passos. Duas catraias vestidas num tardio corso perguntam-me o que faço por entre duas mordidas num seco molete e um esbracejar duma varinha de condão, com as asas esverdeadas e esgar sorriso ladeado a batom vermelho infantil. As paredes multicoloridas dum interior paupérrimo, o quarto aberto numa tijoleira acastanhada parecem imitar o presépio proverbial de uma adolescência votada ao abandono paterno. Os balcões das tabernas serão sempre mais inebriantes que a canalhada ao colo numa tarde inverneira à frente do fogão de lenha. Mas muito menos prazerosas.
Entre os haveres sobre o roupeiro antigo, encontro uma empoeirada fotografia de casamento que é rasgada no imediato e à minha frente. Um sorriso escorre na face cuja ruga amortece a lágrima azeda de uma memória perdida “Tivesse eu partido uma perna e aberto os olhos, mas no meio disto tudo, sempre me deixou os meus tesouros” e olha para as pequenas fotografias de dois mancebos louros e sorridentes, que lhe levam o parco salário e enchem o coração. “Vou ver agora o jogo de um, faço de mãe e pai” e despede-se quase com uma desculpa por ser assim, simples, humilhada por um gentio, acomodando um saco de cereais de chocolate e passando a mão na ombreira da porta da garagem aproveitada para habitação. Um lar é-o onde nos fazemos lugar. E amar.
A mãe vê-a sair, conta-nos pormenores privados que lhe embolavam a garganta e a alma, pede-nos para medirmos o balcão inexistente da cozinha. Será um presente para a filha. Prometo-me a mim mesmo que se algum dia me for facultado mais do que preciso para o próprio dia, levarei àquela a casa a fartura cuja míngua lhes faz a vida dura.
Terminado o trabalho, a mãe, avó, amiga, cliente e peixeira, despende-se com a ternura de quem pelos seus zela:
Ela está sozinha. Mas nós estamos com ela.
publicado originalmente no "Crónicas do Porto"
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Nada atemoriza tanto, nem cativa de forma igual face a tudo o que encerra, que uma folha branca num caderno onde sonhei depositar sonhos. Não me parece existirem montes suficientes onde eu possa desfrutar, na mão cheia de dias de vida que me restem, de um pôr-do-Sol empoleirado numa rocha.
O colorido Sol que se aninha por trás de uma colina adivinha um tolde cinzento salpicado por cinzas pequenas, trazidas pelo vento, para que ao longe todos se apercebam da tragédia que são estas labaredas. Talvez seja um desesperado acto de consciencialização, as árvores, flores, vegetação e talvez até animais, que se deixam consumir em carvão e farrapos cinzentos, a cinza que se respira, que se aloja no nosso corpo e se transforma ou reforma dentro de nós, encostadas ao nosso âmago, aconchegando-se àquilo que nem nos lembramos de possuir, um coração, para que possam sobreviver mais um pouco.
Acredito que sejam estas cinzas que choram quando o meu corpo as leva, sem saber previamente, ao local onde elas próprias se cinzelaram. Não queimaram ali, mas a cinza (ao contrário do ser humano, sente e por isso sabe-o sem dar lugar a incertezas) vê no negrume do queimado as suas próprias mãos, ramos e sonhos. Uma árvore é-o aqui como é num outro monte, não há duas árvores, nem tão pouco uma floresta, uma árvore é a mesma árvore onde quer que esteja e não será, parece-me, por nós não o sabermos ou acreditarmos, que ela deixará de o ser e de sentir sua a perda de outras, assim o pensámos, árvores. Temos tanto a aprender com elas…
Vamos aprendendo o que outros sabem, sem grande margem para aprendermos o que nós próprios nos ensinamos, parece-me que corroborar algo escrito se torna o caminho mais fácil quando o escrito está já institucionalizado. Percorremos as estradas que outros, a seu tempo, traçaram e, convenhamos, bem o fizeram, mas não será este o tempo de nos cansarmos dos mesmos caminhos e dar azo a que novos trilhos surjam, aqui e ali, primeiro como indeléveis percursos de vegetação calcada, gravilha depositada, serpentados atalhos daqui até ali, para darem origem a alamedas que, depois de abertas, surgem tão óbvias que nos fazem indagar, como raio é que não vi isto antes? Até aqui a vegetação, as árvores, nos prestam o seu legado ao serem elas mesmas a dizer, vem por aqui, olha como me prostro, para que vejas este caminho. Serão elas, brevemente, a dizerem, perguntarem, não estás farto desse caminho? E a indicarem, a quem as quiser ler, que não sobram espaço nos livros para os mesmos caminhos, que há necessidade de mais, ou menos, e à medida que nos libertamos do peso daquilo que conhecemos vamos subindo, descendo, em espiral até ao momento em que este corpo será forro para o caminho que as árvores percorrerão e nós perderemos as dezenas de gramas que alguém pensou serem o peso da alma, mas a alma não tem peso ou massa. Estas dezenas de gramas são o correspondente às cinzas das árvores que nos fizeram caminho e estavam, há muito, alojadas no nosso coração.
Dia virá, como o vento, como as pessoas que passam neste trilho, em que saberemos o caminho para casa e as árvores não tenham a necessidade e quase obrigação, como espécie mais inteligente, de se sacrificarem e em cinza subirem connosco para que aprendamos: o caminho não é senão o que fazemos imóveis.
(in Bird Magazine, 2017)
As cinzas dormem esquecidas do fulgor da noite anterior, repousadas na espessa pedra cujos pés das panelas negras fizeram as covas onde se acumulam as memórias do que não se sabe cozinhar. Por cima, o presunto defuma-se e as teias de aranha ondulam sob o peso da fuligem que o vento, aproveitando as telhas mal sobrepostas, anima.
A noite de Natal, ao contrário das outras, traz consigo o barulho bater das portas do automóvel de cilindrada elevada cuja toponímia automobilística ostenta brasões de cantões difíceis de pronunciar. Depois da velha porta de madeira abrir e se ouvir o tilintar da pequena persiana que serve de coberto para a caixa de correio, ouvem-se os miúdos descerem chapinando o tempo e a chuva que se infiltra por onde quer que se olhe.
A aldeia ilumina-se de alegria, não há pinheiro que resista aos cavaleiros perdidos que regressam ao lar que os viu parir. Os gorros sobre as orelhas e as felpudas pantufas contrastam com os chinelos negros da matriarca octogenária de luto vestido pela memória de quem se sentava à cabeceira da mesa cujo tampo de inox vê, hoje, toalhas de papel em que pontas se rasgam para que miúdos, às escondidas, imitem vícios de adulto e enrolem pequenas cigarrilhas cujo mau gosto desencorajará, felizmente, aventuras maiores.
As memórias tropeçam e espreitam pela pequena janela nublada da cozinha. O louceiro e os púcaros alinhados não permitem grandes veleidades natalícias, a mão que se limpa ao avental azul e o desaperta, para passar as mãos nas fartas cabeleiras dos pequenos e, depois, o beijo destreinado nas faces cuja canalha acolhe com um franzir de testa e o sorriso pelas cócegas que o buço incita. Há um respeito pela simplicidade de uma casa em formato de manjedoura. A natureza curva-se e chora de emoção por se sentir amada.
Ontem o braseiro uniu família, até os vivos apareceram. A distância do céu ao coração dos que ficam é curta. Tarde na madrugada os carros de matrícula estrangeira arrancaram rumo à cidade. Levaram com eles a saudade. E hortícolas que a terra, em agradecimento, desabrocha a quem a ama.
Abotoado o avental azul, sacudiu da borra de café os pequenos grilos brancos e verteu no púcaro metálico o silêncio a fumegar. O papel colorido rasgado contrasta com o cinzento das paredes. O café amorna o palato e o sorriso tímido de quem está em paz com a vida. E com a dor.
As cinzas, que dormem esquecidas do fulgor da noite anterior.
Publicado originalmente no Canal N.
Na base da estrada, junto ao desnivelado passeio, vejo a escadaria alva piramidalmente subindo e lamento o meu despreparo físico. Suspiro e inspiro a ideia de que percorrerei aqueles degraus várias vezes até, por fim, cansado, sobrar tempo para rematar o trabalho, ou ajudar a rematá-lo, pois sou tão amador nesta arte, como a deitar uma mão cheia de palavras à terra e ver nascer uma frase.
A simpatia usual acolhe-nos abrindo a porta do coração, pedindo-nos desculpa pela casa estar desarrumada. Há pessoas que vivem e quase pedem desculpa por viver (é deles o reino dos céus). Olhando-me do fundo de uma altura que a vida não deixou crescer, sorri. Diz-me irmão de meu pai, o que desperta na fisiológica versão mais velha de mim um sorriso. E volvido o engano, desculpa-se novamente. No meu proverbial silêncio respondo com um encolher de ombros sorridente. Ao fundo do corredor, do canto da sala, uma Nossa Senhora de cerâmica com quase um metro e noventa observa-me os passos.
Na cama, jazente, o marido sorri por detrás de uns óculos grossos e uma cara diferente, muito diferente dos retratos de mocidade que ornamentam a parede. Prostrado, aprisionado num invólucro que a pouco responde, como se o corpo não encontrasse forma de se ligar à vontade, vê-nos começar e brinca ao dizer estar a ver como se faz, para depois fazê-lo. “Foi um aneurisma” diz-nos a senhora e para mais não deu, pois pede-nos para começarmos pelo outro quarto, estavam a chegar as Senhoras do Serviço de Apoio Domiciliário. Batas brancas, mãos de látex, rostos que transportam candura e amor na religiosa tarefa de assear, higienizar, sanar, enobrecer o vigor que deixou de responder e, no final, encher o peito para que o orgulho não encontro deglutição e soltar um “Parece um rei levado ao colo por duas mulheres!”.
Voltamos ao quarto, há meia dúzia de dezenas de minutos para que tudo se encaixe, enrosque, aparafuse, afine e limpe. E por entre estes, já sem as angélicas figuras de avental cujas máscaras não escondem a face de quem faz o que ama. E ama o que faz.
Ouço a história, o desabafo repetido de quem me diz que agora que podia estar bem, aconteceu-lhe isto. “Mas Deus é muito meu amigo”. Diz-me que vendia peixe numa carrinha com o marido, as histórias dos calotes das freguesas, as façanhas para reaver o valor (ou os bens) que por lá ficariam à sombra do desavergonho, o marido que “ele é bom demais” se enfiava no volante para não pedir o que era dele. Escuto, rangendo-me, as histórias do marido, abandonado numa instituição para onde os serviços sociais do hospital tinham persuadido a enviar, a alimentação pela sonda porque dava trabalho a dar de comer, a voz calada e os quilos que ia perdendo, talvez para ser mais fácil a morte ir chegando, a completa paralisia de quem já viver não sabia. “Há-de vir busca-lo para levá-lo num caixão. É coisa que se diga? Tive que ir a uma psicóloga!” E o filho “é muito meu amigo, está na Bélgica”, vendo a mãe soçobrar o vai buscar à instituição (poderei chamar-lhe prisão?) com a ajuda do Presidente da Câmara e o coloca, agora, aos cuidados de quem a este mundo vem ajudar. E amar.
Sorrio-me com os progressos conseguidos “já come sozinho. Já viu, como Deus é bom?” Mais cego é o que não quer ver. “E agora que fala é que consegue contar o que passou lá em cima, na instituição”, a fome, o que ouviu sem poder responder ou contar, o quarto sem janelas, o quanto queria ter morrido, “mas agora, ó, já sorri, vê as notícias, come sozinho. Tenho fé” e vira o olhar para as restantes imagens de santos e santas alinhados nas paredes.
Despedimo-nos do marido, o pacífico sorriso não mostra que já esteve no inferno, aprisionado dentro de si mesmo e usufruindo agora da liberdade constrita de conseguir segurar um garfo ou uma colher.
Já à porta, a senhora chega-me o casaco que ia ficando esquecido sobre a colcha. Sobre o soluço reprimido e sem ceder ao mais do que legítimo lamento, olha para o marido e sem se queixar uma única vez, ao longo de toda a manhã e narrativa, remata “já viu que grande milagre Deus fez?”
Publicado originalmente no Correio do Porto aqui.
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Nascente
(originalmente publicada no CanalN, acessível aqui: https://www.canaln.tv/cronica-nascente/)
Tinha estado virado para o mar, catraio entretido com o avançar e recuar das ondas a meus pés alvos, desconhecendo que nas minhas costas o ondular marinho dobrara terras, criara serras, eriçara pinheiros, sobreiros, oliveiras, carvalhos, castanheiros.
Ao ritmado canto das ondas caindo sobre elas mesmas, sobre o olhar ladino de um ou outro seixo, nas minhascostas a vida fazia-me frente. Eu apenas não sabia, inocente.
A maresia sobrava presa nas dunas, enterrava-me na areia, o mar como traquina borbulhara nos dedos a arfar. Pensara eu que me convidava a navegar.
Quando o Sol se pôs nas águas que pareciam ondular acima do próprio oceano, piscou-me o olho a saudade. Afogava a cidade. Quase caído ao firmamento, convida-me Febo em inusitado lamento, voltar costas à maré, sulcar novos horizontes e, eis, imponente, Trás-os-Montes.
Havia toda uma ilha imensa rodeada de um mar de pedras por onde falavam torgas.
Empurrado pelo tempo, cada planalto fizera-se monumento.
O silêncio incitava a ensejo dos dias a voltar, ir e regressar, sempre pelo mesmo carreiro por onde a chuva se fará ribeiro.
Despreparado, o corpo fugia na agrura de uma lavoura, escondido na lenda de uma moura, o calor atirado como uma onda, caído de costas no cansaço da monda. Ah, o corpo. Amadurecido. Que mulher um homem poderia ter sido. Ou o homem, dela parido, que a ela quer voltar. Ao borralho sabe-se o tempo amar.
Poderia ser assim o relato do meu mergulho no ameno entardecer rural, mas como explicar a paixão, se nunca se saiu do chão?
Ainda hoje me vi do lado de lá, duas vezes, agarrado a um vinhedo podando, sentado na beira dum fontanário a molhar a maçã que pedi emprestada num pomar.Encontrei-me nas duas vezes. Agora, saboreio a filha da macieira nas mãos meladas da videira. Aqui, Jesus teria nascido numa eira.
Na primeira vez que vi Trás-os-Montes fechei os olhos.Na segunda também.
E compreendo-me agora, sem muitas palavras.
Todos os rios debruçam-se ao mar. Eu navego-me diferente, sou da nascente.
(publicada originalmente em 17/11/2022 no Correio do Porto em https://www.correiodoporto.pt/prioritario/shabat)
É dia do Senhor. Faz sentido. O mundo pára e descansa, o Criador espreguiça-se da laboriosa, embora fastidiosa, tarefa de olhar a sua obra, o momento profano em que criou o humano. Galgo as margens do Douro, enveredo nas serpentinas alcatroadas que ladeiam as veredas esverdeadas onde, em tempos de limpeza de valetas, na ausência de cantoneiros, outros de roçadora na mão ou debaixo do sobreiro protegido à escondida da chuva, atrás do suor e da viseira de rede, abrem alas à procissão quotidiana e incógnita. É sábado e é isto que me pede o meu pai. Pai. Ambos.
Várias dúzias de curvas e chegamos. Portas abertas de par em par, a corda da roupa que se iça para que a manobra permita aproximar da porta de entrada e afastar do esforço de descarregar. Sem o saber anoto-me, fitando ao longe os montes de costas voltadas ao Douro, o Sol a escorrer-se na manhã fria, a vizinha provocadora que assoma à janela com testos de alumínio soltando impropérios, ela e os testos, metalizando a chegada ao destino. A mina seca como uma garganta horizontal de um precipício sem fundo fita-me em desafio. Décadas atrás e por lá entraria de lanterna em punho e medo a tiracolo.
Embora resista, as letras voláteis esperam por mim nos socalcos onde pendem os finais das frases, o desfiladeiro de um parágrafo, o grito no vazio da falta de obstáculo e objectivo. Há por aqui vida. E nem o sabia. Que fazer, além de deixar que me escreva a simplicidade genuína de quem nos desarma quando a vida se lhes faz às prestações? Para escrever não há pregões. Apenas silêncios. E soluços abafados na face voltada às emoções. Em poucos minutos, entre estratégias para dar forma ao roupeiro no exíguo espaço, fico a saber de mais de três décadas de vida com o sofrimento pendurado ao pescoço, como o avental. Um casamento com o mal. A sofrida ausência de um carinho quando nem por aqui sabe o bem caminho. Não sou digno, sequer, de entrar em tal morada.
A cozinha feita sobre a varanda onde fora outra cozinha. O chão nu de carvalho roído pelo bicho. As janelas folgadas onde o frio não entra por respeito, as portas retesadas de um verniz quebrado, os amarelados rendilhados alraiolados de um clube pendem porque lá não chega para retirá-los. Ofereço-me e desaperto a cangalhada. Os três fogões alinhados, o Sol que entra pelas frestas de um telhado voltado ao frio. “Herdei-a do meu tio”, quase como desculpando-se, “tomei conta dele e da mulher vinte anos. Acamados”. “É uma vida”. “Fizeram um testamento e deram-ma”. As frases saem monocordicamente, como legendas de um episódio de uma ficção profundamente real. Aceno na justeza da decisão familiar, “criei os meus ali em baixo, naquela” (a casa de pedra sobre pedra cimentado pelo vazio) “casei os quatro e não fui a nenhum casamento”. “Estive casada trinta e sete anos, para nada, só fiquei com dívidas, mas lá o mandei embora, já chegava”. Ofereço-me para pendurar o varão do cortinado no quarto, agradece-me enquanto me mostra as fotografias dos filhos num baptizado “olhe que o rapaz deve ser da sua altura” gaba-se. “Tenho um companheiro. Viúvo. Não fui para casa dele, veio ele para aqui, é melhor assim”. Sorrio anuindo, “fez muito bem” remato sem saber o que dizer enquanto arrumo instrumentos e também o coração, que já me tinha caído aos pés.
O sábado, assim como esta folha, obedece ao confinado espaço onde deitar aquilo que me faz soluçar. Apesar das mãos cheias do que não me sobra remato a narrativa e meio dia escorrido pela fronte. De sorriso garboso despediu-se num “Vá com Deus!” e, epilogamente, solta um ligeiro “há que ter fé, um dia tudo fica melhor”.
Sorrio emocionado. Já me esquecia… hoje é dia do Senhor.
Nada como fazer variar os passos nas direcções que nem eles sabem seguir. Talvez por isso, deduzo, daí nasça a expressão “o caminho faz-se caminhando”. Há a cada restolhar da vegetação o desconhecido animal que se esconde nas sombras que os meus olhos não iluminam. É a noite, felizmente, na pardez do passeio que orla o ribeiro alcatroado onde a pressa se apressa e o claquear das tampas de saneamento parecem o esgrimir das agulhas com que a minha mãe fazia pequenas indumentárias de lã para crianças, e um dedo por cima a colocar mais fio, em troca de um trocado que tanto valia como sentimento de independência, como de migalhinhas se faz pão, acumulando ao que a vida simples nunca precisou.
Desisto de caminhar pela estrada, até porque esta constante rememoração do que habita em mim e de certa forma constrói o meu passado neste hiato de tempo, está a tornar-me desleixado e a velocidade com que a pressa passa por mim poderá nem se aperceber da figura negra que vai sombreando a escuridão rarefeitamente estrelada. No primeiro entroncamento os paralelos apercebem-se dos meus passos, um candeeiro esbate a luz amarelada em sinal de boas vindas e eu sorrio, ainda que seja a cura para tudo, é a mais eficaz forma de emulsionar o que me rodeia. É campo na aldeia.
O estendal improvisado no arame da videira, agora despida, atravessa o terreno como uma série de bandeiras da nação de um homem são, a roupa pendurada veste a noite nua. À porta de madeira, fazendo companhia ao ferrolho encarquilhado, uma cruz de sobreiro, acastanhado, assinala a cruz, do que se ama, do que se carrega. A casa com as pedras religiosamente alinhadas, sobre elas mesmas pousadas, deixam passar pelas fendas o frio da noite acompanhado do meu olhar, permitindo que veja um fogo aceso de labaredas sorridentes e oscilantes e um mocho de cortiça onde um vulto, acabado de atravessar a parede, se senta e faz companhia ao velho tição que resiste ao dia para ver chegar-lhe a noite aos olhos e aos ossos, enquanto o carro ao longe, sob o telhado de zinco, se acomoda o melhor que pode descansado das viagens que já não sabe fazer.
A vantagem de novo percurso é ter os pés a perguntarem, a cada encruzilhada, que curva deve ficar para trás. A ruralidade é um tufo de resistência verde carrajó entre ermidas, cafés, bombas de gasolina, casas geminadas e por vezes germinadas. Alastra-se como uma mancha de sujidade numa toalha de linho a presença humana, novos caminhos sobre a velha terra que resvalam para o ribeiro apertado, escorrido, erguem-se olhares desconfiados para este tomba-lampiões que atravessa a noite e sussurra – boa noite – sem que o sussurro traga volta. Não há confianças a estranhos. A casa nova, dois pisos, a opulência de uma arquitectura distinta tenta envergonhar o casebre anterior, a porta da garagem automática assemelha-se a alguém que se abre sem ter coração. É. Somos apenas ilusão. A lavandaria pariu uma bacia de roupa seca, cheirosa, quase quente, que nunca vestiu a noite. E no piso de cima um fogo apagado nas labaredas por detrás de uma redoma de vidro onde o calor não aquece o frio de quem se esquece que para entrarmos na vida temos que ter o corpo vazio. Como eu, na distância entre o que sonho ao que sorrio.
ENXERTIA
As uvas que ficaram para o podador pendem mutiladas de ferroadas agrestes, da vida e das abelhas, ébrias também de zunidos que mais ninguém escuta. O acre odor das intrusas americanas encosta-se à tristeza de um Outono confundido, onde todos se queixam do queixume, sem permitirem ao azedume avinagrar na exacta medida do incorrecto, engolindo indiferentes as tragédias entre duas garfadas. O tempo de vindimar passou há muito, as folhas alaranjadas e avermelhadas aveludam o chão de pedras toscamente assentadas. Há um percurso aberto em par pelo portão de madeira que se vai desprendendo das chumbeiras e o musgo verde pacientemente aguarda a chegada do orvalho da manhã seguinte.
Chama-me à atenção a existência de um simples e alvo carrinho de bebé à entrada do pequeno carreiro. Faço por estacionar uns metros à frente e vejo a criança acompanhar o percurso com o ligeiro virar da cabeça, enquanto lhe cai das mãos o brinquedo simples e vulgar. Uma mão surge, suja, escura pelo ruborizado suco que cai quando as uvas, gordas, fartas, se esborracham em sentidos ao toque das mãos virginais de quem é pobre, bom, simples e, por isso, rico. A mão apanha o brinquedo que é soprado e colocado no colo da criança, sorridente, sem desviar olhar e ranho que brilha na minha direcção.
Vejo umas escadas de madeira, o homem e a mulher quase indistinguíveis no género sob as vestes sujas simples e divinais de quem labuta o que Deus dá. Percebo algumas folhas no caminho, soltas das solas de quem percorre os poucos metros entre o carreiro e a carrinha de caixa aberta, com uma jovem adolescente sentada no taipal, onde aguardam cestos e gigas abertas, de plástico e de vime, com letras marcadas, pintadas, na inocência caligráfica de quem aprendeu a escrever da própria vida.
Vindima-se escada acima e escada abaixo, sobe-se e desce-se os degraus de madeira escorregadia, peganhentos. Faço de conta que leio algo depois de disfarçar a minha presença com um telefonema fictício onde articulo uma conversa imaginária comigo mesmo. O bebé parece preferir o movimento dos, imagino, seus pais e facilmente se esquece de mim. De vez em quando o adolescente na carrinha assobia e o bebé sorri na sua direcção, familiarizado com o som e o amor que o mesmo parece fazer vibrar mecanicamente o ar que os separam. O homem ergue um cesto, grande e pesado, a mulher limpa o cabelo da fronte com as costas da mão enquanto sorri para o bebé, a adolescente recebe o cesto do pai e orienta-o para uma das gigas vazias, afagando depois o dorido ombro do pai, num bálsamo que só o toque de quem em ama consegue massajar.
Não faz sentido esta vindima, tardia, neste fim de manhã quente. Há quem diga que isto traz o diabo no ventre! Mas vejo agora que o divino está acima do bem e do mal, a vida tem planos não coplanares para cada órbita dos átomos que me compõem e eu, que até ali pouco sorria, vejo-me no retrovisor e percebo que a alegria me fez, no olhar, uma enxertia
(2017, Bird Magazine)
Quando há alguns anos, após anúncio de cortes nas reformas, vi numa reportagem de um canal de televisão uma repórter perguntar a uma senhora, numa qualquer aldeia do interior, se não a preocupava os anunciados cortes, não esperava o verdadeiro sentimento de interioridade. A menina do microfone perguntava com insistência se não amedrontava a senhora, de negro carregado, lenço debruado a prender o cabelo, duas madeixas alvas a espreitar o dia sobre a testa, o tão aclamado corte na pensão. E a senhora, de uma compleição nobre, como só o consegue o verdadeiro pobre, respondia com educado sorriso a cada investida jornalística. Foi no meio da enésima insistência que, finalmente, despindo a vestimenta a que doutos engravatados teimam em fazer vestir a ignorância, s senhora reformada de uma vida de labuta agrícola, vivendo uma longevidade pautada pelo pão nosso de cada dia, respondeu num tom educadamente irado:
– Oh menina, eu temo é que me venham cortar as couves que boto no caldo. Quero lá saber desses que governam.
E na pausa infinitesimal que pairou na matutina interjeição da repórter, sem o suporte auricular com que as vozes escondidas, sempre elas, ditavam perguntas e respostas ainda antes de serem respondidas, a voz ficou sem resposta porque o silêncio falou sempre mais alto que a ignobilidade. Voltando costas à reportagem, ainda escapou à granítica voz de torrão negro eriçado numa tarde de lavoura, regado com suor, sem qualquer dor.
– A avareza pensa sempre que o que temos é a pobreza.
Não há alicerces para quem pensa que volvidos uns erários, podemos viver como se nos envolvessem sudários. Quem no interior se arreiga, sabe que a vida é mais do que a veiga. Solte-se ou não a intempérie, alvitre-se ainda a sentença de uma estrada recortada nas encostas dos montes e para lá destes, nas prateleiras da cozinha esculpidas em paredes de granito ornamentadas por embalagens de medicamentos cujos laboratórios lucram na falta de saúde, celebra-se sempre a existência divina ao toque de um alaúde. Ou de um trautear silencioso, em volta das leiras, no final da tarde aquecida pelas lareiras.
Sem saberem que estas gentes comem o pão apenas amassado por elas e entram na noite à toada de velas, bruxuleando, navegando a vontade de Deus, fazendo de desconhecidos amigos seus, enquanto num braçado levam metade da vida e, à cabeça, uma rodilha onde assenta um mundo de memórias.
Mas esses fracos não conhecem estas histórias.
(publicada originalmente em https://www.canaln.tv/cronica-interioridades/)
Gosto de afagar o destino.
De lhe dizer, no final de cada dia, que o amanhã será o que ele tiver sonhado, apenas e só, para na recursividade do sentir, ele se soltar desta matriz, complexa, e ser o que é, destino.
As tardes vão-se julgando por quanto de sonoridade convexa se expande da televisão ou do computador.
Não sejas, materializa-te nas etiquetas do que vês, no rating das tuas (boas?) acções, rasteja sob o jugo do que te impõe quem te manieta, para poderes dar um passo da cadeia à janela gradificada que é a tua liberdade.
Enquanto não fores de vento, toda a tempestade te atirará contra o contrário.
Amanhã, pelos raiares do dia, ainda que nublado, serás marioneta dos teus sentidos, sem te despedires do teu mais alto ser, percorrerás as estradas e dirás, orgulhoso, antes de trabalhar, que vais à luta.
Mas a luta é o teu maior antídoto à dopagem de quem se acerca de ti com o dicionário, em riste, de folhas brancas, com apenas um significado escrito para o teu desejo de ser mais: implica consequentemente severas sanções já que significa frequentemente um risco para a segurança dos outros ou dos interesses colectivos.
A felicidade caber-te-ia na palma da mão, se soubesses que a tua liberdade, ao invés das tuas aplicações a prazo, são do tamanho da segurança de quem te deu a vida.
Dou por mim a lembrar-me de Mateus, em temos de outros porcos, ou do que escreveram em nome dele: "Não vos inquieteis quanto à vossa vida, com o que haveis de comer ou beber, nem quanto ao vosso corpo, com o que haveis de vestir. Porventura não é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais do que o vestido? Olhai as aves do céu: não semeiam nem ceifam nem recolhem em celeiros; e o vosso Pai celeste alimenta-as. Qual de vós, por mais que se preocupe, pode acrescentar um só côvado à duração de sua vida? Porque vos preocupais com o vestuário? Olhai como crescem os lírios do campo: não trabalham nem fiam! Pois Eu vos digo: Nem Salomão, em toda a sua magnificência, se vestiu como qualquer deles. Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã será lançada ao fogo, como não fará muito mais por vós, homens de pouca fé? ... Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará por acréscimo..."
O acréscimo é a consequência terrena de abrir os olhos e sentir, para respirar basta inspirar, quando o soubermos fazer pelo olhos, será o dia em que diremos adeus ao corpo.
Felizmente a maior poesia não pode ser escrita, ou lida, por nós.
Apenas pelas árvores.
E essas sim, nunca mentem ou obscurecem outros, apenas por serem de outra ramagem.
[crónica publicada originalmente no Correio do Porto: https://www.correiodoporto.pt/cronicas-do-nada/a-guerra]
Sem muito mais companhia em mim do que a estrada a murmurar os quilómetros em jeito de balada distanciada, percorro o horizonte sem nunca o alcançar, pincelando o céu com algodão doce e nuvens disformes, senhoras do firmamento. A viagem é, por vezes, servida com um lamento.
Com maior ou menor dificuldade, os corpos curvados alinham-se como na formatura, saídos da recruta, moçoilos enviados para um serviço militar obrigatório ultramarino ditatorial, arrancados à parvónia e a uma vida polvilhada de centeio, cereais, madrugadas gélidas e noites musicadas por ais, crescida pelo que a parca informação trazia em forma de boletim. Há quem viva apenas porque sim.
Recordam números e apelidos, identificados pelas terras que os pariram, sem patentes agora, apenas o tempo iguala o homem e corta rente os minutos antes que perfaçam a final hora. As cadeiras arrastam-se, o burburinho no ar reúne os sons das armas semi-automáticas ao ombro, a pose de uma fotografia gasta que, também ela, perde o vigor e alvura de uma luta. Atrás de mim ouço “a guerra é uma puta”.
Os olhos marejados de água procuram outros que possam sorver as décadas de silêncio que o conflito interno atiça. “Não o consegui na missa”, diz-me, “sabe onde anda o capelão?”. Respondo negativamente com a cabeça, volto-me para o naco de presunto, “Desculpe o assunto”, enquanto se apoia na bengala curvada volta ao desabafo “Queria confessar-me antes que morra”. “Não pense nisso agora!” tento acalmar o bravo que partiu para o ultramar inteiro e de lá numa peça veio, mas com a alma estilhaçada que apenas a morte tratará de apaziguar. “Não”, avivando o lume no marejado olhar castanho e baço, “Sei que fiz muitas asneiras, matei muitos”, a maré agiganta-se no olhar, na contorcida cara, no queixo tremente, os nós dos dedos esbranquiçam-se ao apertar com mais vigor a bengala “Mas eu nem sabia o que fazia. Eram eles ou eu, coitados. Matei muitos, mas não queria, foi tudo sem querer”. Atrás da lente espessa uma lágrima de tristeza rebenta, funga uma vez, cerra os olhos e vira-me costas, talvez para tornar a combater uma nova vez os inimigos interiores e descai-se numa “A guerra foi uma puta. E, depois, a vida também”. Eu que nada percebo da vida além do dia-a-dia, aliás, o tanto compreendo que me é retribuído pelo tempo ao dizer-me que de mim nada mais há esperar (e eu que pensei viver ser apenas respirar e amar), coloco-me no pensamento em absolvição quando me olhou novamente “Desculpe, eu só precisava de falar”.
As vozes agigantam-se, a audição, como a vivacidade, vai-se esvaindo. O segundo comandante discursa num suspiro “Estamos numa idade bonita (pausa) e já sabemos o que nos espera”, todos nas suas oito décadas, a honra e glória de quem por lá andou e regressou rasgado de mérito, os que pela hombridade se mantiveram fieis à distância do desenrasca “se os outros roubavam, porque não havia eu de roubar?” e uma trémula mão no meu ombro pede-me desculpa “é para me agarrar, já estou um bocadinho bêbado”. Bate-se palmas, uns olham para o relógio, humildes, senhores deles mesmos com a imaculada presença terrena de serem fiéis à seriedade, está na hora de ir apanhar a carreira.
A meu lado, um soldado invisível no seu ar de jovem adulto, fardado de luz, olha com ternura para os ex-camaradas, vê as feridas que trazem ao peito, ao invés das medalhas que os generais cravaram a sangue dos subalternos. Confessa-me “aquele é o próximo convocado” e na solenidade de um anjo, sussurrou-me antes de ter partido, “a morte, na guerra, foi o melhor que me podia ter acontecido”.
Crónica originalmente publicada no Correio do Porto (aqui).
O termo meio do monte deve ter sido retirado por alguém que se deslocou aqui, onde estou. A carrinha entra folgadamente e sem custo, mas a saída avizinha-se difícil pois não há local para poder inverter a marcha. Um pouco como a vida, entramos de frente, saímos às arrecuas. A casa parece ter nascido ali, entre pinheiros e eucaliptos jovens, rodeada de caruma, bolotas calcadas pelo Verão e montículos de cinza onde, adivinho, se devem ter queimado restos da limpeza do terreno. Os cães surgem ao caminho, não ladram aos pneus da carrinha, fazem uma espécie de guarda ou inspecção minuciosa a quem lá vem.
Não há campainha, ouço uma saudação vinda da esquina e uma senhora surge, vestida de negro, encurvada talvez pelo tempo, talvez pela idade e embora possamos pensar que se trata da mesma coisa, tempo e idade, são lados bem distintos de uma moeda que teimamos em poupar. Há quem chegue à idade sem tempo e quem não tenha tempo para ter idade. Coisas estranhas. Como esta casa, térrea, quadrangularmente regular, onde me chama à atenção o poço e a nora de cocos. Seriam ornamento ou ainda funcionariam?
Cumprimenta-nos com uma simpatia própria de quem é senhora de si e manda-nos entrar. Diz-nos que já arrumou as coisas do quarto para caber a cômoda, pede desculpa por não ter nada para oferecer de beber, era o falecido que tratava das aguardentes que recebia quando andava a cantonar caminhos, agora de bebida só água e o café com borra que descansa na cafeteira metálica espessa.
Pousamos a cômoda, está algo escuro dentro de casa, não ajudará certamente o dia farrusco em que chove fuligem e choram as árvores. Sorrio ao passar por uma série de calendários de anos distintos, cada um com uma imagem diferente de Nossa Senhora de Fátima. De resto, a casa é sombra e alvura de paredes, mesmo na cozinha com a mesa de tampo zincado e uma só cadeira forrada com um avental. A lareira convidava a ficar sentado no mocho, um torpe resto de pinheiro, mas por educação esperei à porta.
Compra-se às prestações aqui. Algo certamente em desuso, penso. O senhor com quem vim tira dois cartões do tamanho de um vulgar cartão-de-visita, nos quadrados anota valores que deduzo serem as mensalidades ou prestações. Na primeira quadrícula do cartão coloca uma cruz, a primeira prestação é oferta, disse-lhe. Esta baixa o olhar envergonhada, não quer aceitar, mas perante a insistência agradece. Vai à arca congeladora e tira um frango, quer retribuir o gesto. Esboçando uma negação ele pega no frango congelado e ao mesmo tempo que faz o gesto de sair para guardar na carrinha o cadáver do galináceo, pede-lhe para ir ver se a medida da cômoda era mesmo aquela. Ela sai da cozinha, ele pisca-me o olho e rapidamente coloca o frango de volta na arca congeladora e ainda retira do bolso do casaco uma embalagem de comprimidos que coloca por entre outras caixas iguais.
A senhora surge, era mesmo aquilo, diz-nos, logo depois do terço já se irá entreter a meter a roupa nas gavetas. Saímos de casa, os cães parecem anuir o gesto de bondade do vendedor com uma escolta até à carrinha. A senhora acompanha-nos e antes de fechar o portão de madeira, diz que se conseguir vender a lenha dos dois pinheiros que caíram por causa da doença ainda encomenda um banco pequenino de pinho para si mesma, como prenda de Natal.
A manhã vai cedo ainda, tal como estas linhas. Temo não me chegar diuturnidade, nem vida, para poder esculpir todas as palavras que me brotam do granítico silêncio a que me voto. Estacionado contra a mão na margem esquerda do Douro, quase consigo ouvir Egas Moniz a gritar ao catraio Afonso Henriques “não vás por aí, ainda resvalas e lá se vai a nação” e de seguida no desabafo “a criançada não tem noção”.
Apenas um pai tem o condão de telefonar e, timidamente, rematar “só se puderes, eu compreendo, não te sintas na obrigação, não te prendas por mim”. Nada mais nos ata à vida como o amor de quem telefona e liberta com um “tens a tua vida”. Claro que tenho. E a minha vida é Tua.
Absorto, vejo ao longe no litoral uma neblina cinzenta assemelhada a um lençol puído. Peço silenciosamente ao Artesão destas paisagens, para o estender até o interior e abafar os jorros de fogo e como transformam o mundo num purgatório de inocentes. O telefone trina polifonicamente, as palavras ensonadas explicam o restante percurso pelo labiríntico empedrado, leva-nos ao sopé dum lugar onde não chega um carro, apenas uns degraus esculpidos na terra que sorri a quem passa. Até aqui Deus alcança.
Estacionado como posso, descarregamos o balcão, rodapés, tampo de granito (monção) e ferramenta. A porta da cozinha raspa no chão irregular e não abre na totalidade, não vá a vida sair de rojo e nos esvaziar do que somos. O pátio ornamentado de cordas retorcidas onde roupa baila ao sabor do vento parece um arraial para a festa da minha vida. (e o quanto lamento não me sobrar de tempo para o mais importante aqui, viver). Desmonta-se móvel antigo e banca, pedem-nos desculpa envergonhadamente por o chão estar sujo (em casa de gente pura, sujo é quem entra e repara), sorrimos, é normal, está escondido, soltamos em forma de sorriso e ajudamos a acartar o lixo.
O cabelo apanhado no topo da cabeça exibe uma cabeça capilarmente despovoada, o sorriso exibe uma boca que mastigou o pão pelo diabo amassado e, no entanto, envergonha os falsos sorrisos com que me tentam comprar os dias. De mãos em oração sorri ao ver o trabalho final e exclama-nos “ai! que tenha uma banca para a vida. Não que me sobre muito para viver”. Sorri-me. Olho o horizonte. A bondade arregala-me o marejar, ainda nem tudo está perdido.
Ao sair ofereço-me para fechar a porta, a mesma que não abre até final, perra, desgastando o chão num quarto de círculo em forma de arco-íris de uma só cor. Vejo. E reparo, sem acreditar. A porta não abria até ao fim propositadamente. Ela olha-me e sorri, desdentada. Atrás da porta, uma pomba zela dois ovos, o ninho tosco feito de aparas de lixo, os excrementos aqui e ali, a ave que me olha de esguelha e sorri “anda comigo para todo o lado, é para o padeiro, é para o sardinheiro, caga-me é tudo, mas eu gosto muito dela.”
É, por vezes, na mais recôndita e pobre viela que me apercebo da simplicidade da paz nesta existência. E de como é bela.
Queimada, a minha recente crónica no Canal N. (www.canaln.tv/cronica-queimada/)
O pôr-do-sol traz de novo o bailar nocturno dos pirilampos azuis, as intermitências de um socorro enquanto a morte se encosta a um sobreiro recém despido, protegido pelo morno ar que a terra abafa quando cai a vida em trás-os-montes. Colunas de ajuda posicionam-se. A guerra combate-se com a paz. Ei-los, soldados, negros, cinzentos, alvos voluntários. A mão aflita da mãe sobre o ombro do filho ao toque da sirene, “não vás”.
Atrás de cada elevação um novo ocaso. A noite caiu há muito, com ela o peso abafado de um calor que colhemos sem, sequer, o termos plantado. A culpa é dos que manietam, mas nada há a fazer além de desenrolar mangueiras, encher baldes e garrafões, erguer em riste as enxadas, ancinhos e pás. Exaurido, o povo apenas quer paz. Não é rubor de um astro que mergulha feliz no firmamento e deixa, inconsequente, um povo no seu lamento. É o fogo que ruge como fera ronronante ao sabor das presas que tombam.
A torga queima e rebenta, solta floridas projecções de fogo, labaredas bebés que se atiram com o vento onde o lume ainda não queimou e caem, despreocupadas, senhoras da sua natureza, inocentes, levando uma Primavera cinzenta no adiantando do Verão, porque no Inverno a paz, novamente ela, deixará que as sementes germinem em sonos coloridos de branco, cobertas pelo frio manto orvalhado que a lenha queimada aquecerá ao redor da chaminé de pedra. A Natureza não se afina em queixumes. Tem mão firme no que lhe sobrevive, acolhe o que em nós vive.
Os bombeiros correm de aldeia em aldeia, Fogo! Fogo! Fogo!, irrompem mais alto que as chamas os gritos pelo velho Motorola no comando. Arranca um Unimog rugindo pelo corta-fogo, a terra seca acolhe-o libertando o fino pó da agrura que a Terra vai exaurindo, dentro sacodem-se valorosos combatentes, o cansaço agrilhoa rugas negras nas faces inocentes de quem por si se dá à vida. Dos outros.
Nas esplanadas ainda abertas, guarda-sóis cobertos de fuligem, sacode-se das mesas restos de folhas de eucalipto retorcidas e negras e bebe-se mais uma cerveja. O bolso saboreia um pagamento anónimo.
Ao longe, muito longe, nos gabinetes climatizados onde se urdem os destinos financeiros, sorrisos macabros estudam a próxima exploração de lítio, o seguinte empreendimento industrial, o passo adiantado de um jogo de xadrez onde o rei descansa seguro enquanto os Peões, que seguem uma Verdade distinta dos tabuleiros terrenos, se munem de abafadores e tentam, a custo, sacudir o fogo das posses terrenas num mundo que não é seu.
O dia chegará em que as crianças perguntarão: “E onde foi o mal?” E os anjos mais velhos responderão “Ardeu”.
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Falta brasa ao lume que carregamos.
O tempo corre na esperança de nos abrandar para a vida.
Hoje o Inverno vai nevar num pequeno, indelével, silencioso floco em forma de sorriso.
Hoje, o abraço sob... View More
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