Com o amanhecer de Domingo, o Maio anuncia-se nos meus joelhos doridos da neblina. O Café vai tendo as mesmas caras conhecidas, o balcão aquece-se nos braços de fora das mangas curtas. A máquina do tabaco informa o preço do vício a quem conta os trocos para saciar os que fumam por eles, a cada um seu mal, mais uns passos arrastados na lama do umbral.
“Era uma cerveja com favaios”, o tom forte e arrastado de uma voz endurecida ao Sol, na vida, “Se faz favor”, na educação que ainda se cultiva em terras rurais.
A face conhecida coloca-se à frente do nome e, por não me lembrar dele, não o saúdo como queria. Sou mais velho em grãos de terra sob os pés, mas parece ultrapassar-me na tez negra, queimada, de quem constrói para que outros usufruam. Muitas das vezes, a custo de uma subvalorização a que se acostumam, na maioria, os que se julgam superiores aos outros. Encosto-me às letras do jornal, leio as notícias de há um mês, percorro com o olhar as falas que ouço, como se se escrevessem em tempo real as diversas maleitas que acometem vidas cansadas. Quanto tempo mais vivendo realidades passadas?
Sem que as duas televisões me saciem a curiosidade que não encontro mediatizada, venho para a porta do Café, desço o degrau para a rua. Sem saída. Vazia. Nua. O comboio surge num borrão amarelado, parando, silvando, enquanto um ou outro passageiro se esforça por galgar os metros que o separam do destino transportado. É Domingo e, no entanto, nem o jugo de muitos parece ter abrandado.
Há um obituário que me empresta a memória de quem desta vida se liberta, para habitar onde a visão não acoberta. Um aperto de mão, uma palmada nas costas. Por baixo dos óculos sorriem-me e agradecem, reconhecendo já ter lido o meu comentário de pêsames na rede social. Até por aqui se espalha o bem, ainda que construído pelo mal. Faço um esforço para recordar o nome do rapaz. Homem, mas nada. Habituado a vê-lo mais pequeno, surpreendo-me pelo volume conquistado à idade, voz grossa, olhar longínquo, a espuma da cerveja escurecida pelo favaios a escorrer lentamente, como o dia, sem promessa de vir quente.
Depois do toque anunciador da partida do comboio, escuto a história, a mesma de todos e todas, as conquistas e perdas de quem nunca foi ensinado que só se ganha o que não se quer perder e que para tal, basta nada possuir, para tudo ter. Existe sempre quem não compreenda, escolhas e desenlaces, ou a preocupação com os pais, ambos a contas com processos oncológicos. Lamenta-se da actual fragilidade da mãe. “aquilo que lhe metem nos braços”, após duas sessões de quimioterapia. E do tumor encontrado no pai. “Estou em casa deles, a ajudar no que posso”. Olhou para o copo, que lhe devolveu o mesmo olhar, vazio, empurrando-o para o caminho de regresso a casa “Sou filho, era o que tinha a fazer, estou lá a viver com eles.” Deram-lhe uma palmada nas costas, o gesto calado de confortar um homem que poderia ser seu filho, “Vai lá”. Silêncio. “Força”. O “obrigado” saiu embargado e já com os pés a caminho.
Vimo-lo descer as escadas e desaparecer para o túnel do comboio, enquanto eu ensaiava as palavras que poderia dar em forma de abraço silenciado e foi aí, por entre a tristeza, que me surgiu, à distância, o nome.
Publicado originalmente aqui: https://www.correiodoporto.pt/prioritario/nome-2
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Estaciono sob os chilreios floreados de plantas que desconheço, atrás do gradeamento que sorri metalicamente com as brincadeiras dos miúdos na hora do intervalo entre aulas. Está o planeta, pelo menos neste hemisfério, na Primavera, assim como a canalhada, floreando, sem grandes preocupações com os Outonos futuros que lhe trarão tonalidades acinzentadas.
Aguardo à entrada que me atendam. A porta aberta ao público obriga-se a controlar fluxo de entradas e saídas, o progresso chega a todo o lado. Contei vários equinócios de Março, já, no entanto, vejo-me sempre criança à porta de uma escola, como se o tempo me conhecesse apenas agora, miúdo, sem nunca saber fazer-me graúdo.
Envergonhado, vou percorrendo memórias de Abril por quem nunca as viveu, senão pelos cravos dos livros de História. Escondo-me atrás da aparência adulta, rodeiam-me sonoridades e trinados que sobem e descem patamares, degraus, abrem portas, fecham cadernos, vagueiam entre imaginações infantis sem a soturnidade adulta.
É igual à minha, a escola, onde me pergunto ainda o que quero ser quando for grande, a casa comum a todos e, à sua própria maneira, de cada um. A minha, tem ainda a secretaria, a escadaria, as paixões passageiras, as descobertas de um mundo que me habituei a orbitar sem propriamente cá estar, o acesso ao inalcançável reduto das salas dos professores onde hoje, eu ainda tímido, me servem um café e ausculto as visões de um caminho encantado, que me levou ao encontro do, sempre ele… sempre ele, silêncio.
As faces conhecidas convergem em sorrisos. Retribuo sem saber o que proferir, além da sombra dos ramos, na incerteza de pertencer ao corredor que me leva à próxima disciplina que o horário assim me ditar.
À distância temporal de três décadas e meia, reconheço uma professora minha, Geografia, como para me recordar de onde venho e para onde vou (será por isso que nem sempre saiba onde estou?). Encontro palavras suficientes por entre a timidez, sem saber se as profiro em tonalidade audível e vou tendo um diálogo desnivelado, pois apesar do tempo me esticar, quase, às ombreiras das portas, quando ao lado de quem se estima, sinto-me amancebado, com receio que me perguntem o que quer ser quando for grande. Não há escala para trazer à realidade o que um registo sem mapa traça, mas nos olhos brilhantes de ambos, certamente os meus mareavam, procurando memórias que equilibrem e validem que o tempo, de facto, passou por entre todos nós, façamos o caminho acompanhados ou sós.
Neste caminho de encanto pelo adro onde me exponho em palavras, ainda que não as profira, percorro-me como se tivesse programado trazer-me aqui, a uma manhã solarenga primaveril, sentindo-me à altura da professora da minha adolescência, talvez por estar na escadaria da escola, dois degraus abaixo. Geografando as minhas memórias nos interflúvios dos sorrisos, agradecido e emocionado, despeço-me carinhosamente com dois beijos e um abraço, encomendado por um sussurro do lado de lá da escola a que chamam vida.
publicado hoje, 21/04/2024, na minha secção Crónica do Nada, no Correio do Porto.
À saída da VCI e longe dos holofotes habituados a iluminar noites de futebol azul e branco, as rotundas rotundadas convidam a enganar-me, falheiro que sou de trajectos urbanos, agora que me quero cada vez mais rural, plantado talvez àquilo que de mim me espero, um punhado de sementes de nada e um plantio fútil daninhando os jardins efémeros que são os milhões de anos à sombra de um Sol cansado, ainda que adolescente.
Estaciono ao largo do Cerco, por entre pequenos paralelos perdidos por qualquer enxurrada ou calceteiro menos pródigo a arrumações graníticas. O céu cinzento assusta tanto quando o aviso de quem, mais à frente, convida a não deixar nada à vista dentro da viatura. A vantagem de nada ter, é mesmo o facto de nada me poderem roubar. Não termino o raciocínio e já uma saraivada localizada abre alas a uma matiz brilhante da manhã que espreita por entre os gradientes cinzentas do firmamento.
A manhã traz-me a casa alheia. O Salgueiros, no Vidal Pinheiro, era passagem estranha para mim, as escolas e o chilreio desconhecido a pássaro de aldeia, sonorizavam ladainhas que me assustavam. Agora, entrar em casa, no lar alheio, deslocado ainda que sob a alçada do padroeiro de São Veríssimo, traz um estrangeirismo a casa passada dos petizes, sob os pitões aborrachados nos sintéticos relvados, no futebol, na vida.
O bairro parecia ter adormecido há pouco, enquanto a cidade acordava de uma noite mal dormida, com os sonhos à porta gradeada do complexo desportivo de Campanhã. O frio convidava ao esfregar das mãos, soprar o vazio, saltitos pardalescos na imaginação de um Vicente Calderon, ou qualquer outro palco trazido à criatividade dos sub 9 e as suas celebrações de tentos cobrados à moda de qualquer um dos grandes nomes futebolísticos, trazidos nos vídeos curtíssimos de qualquer plataforma ou rede social.
Os pais abrigados na beirada estendem as asas para que os craques do futuro não se molhem hoje. Tiritando de frio nas pernas níveas, esfregam as mãos nos braços de galhos finos dos arbustos que são. Ao fundo, por trás da cerca improvisada em canil, um cão enorme fita os estrangeiros com indiferença. Desloco-me até lá e encontro, no seu olhar desafeiçoado, uma fome de liberdade que o faz negar a bolacha que lhe faço chegar por entre os espaços da rede. Pelo contrário, cerca-se, rodeia-se, coloca a custo as patas direitas numa poça de água e encosta-se à cerca, que tem já o seu molde, como que convidando-me a afagar o que posso do seu espesso pêlo.
Esqueço-me do mais importante, o jogo de futebol entre miúdos, por vezes vivido mais apaixonadamente pelos pais nas bancadas molhadas, do que propriamente de quem espera apenas imaginar-se um Ronaldo, Messi ou Mbapé durante umas dezenas de minutos, pretensões esquecidas rapidamente aquando do lanche partilhado, por um pai patrocinado. O café ao intervalo aquece-me a imaginação, converso circunstancialmente com um pai da equipa adversária, dirigente, com uma chave de fenda na mão para dar um toque no portão de entrada, enquanto recorda, com outro interveniente, as noites dormidas sentadas com o puto ao colo, doente, até aos três anos, a cortisona como companhia e esperança de um ataque certeiro à maleita, o esforço na distração para que o catraio não tossisse e marcasse, assim, mais um golo verdadeiro na baliza adversária que, como sabemos, bem pode ser a vida às vezes.
publicado originalmente aqui: na minha Crónica do Nada, no Correio do Porto.
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As estradas, quando não nos levam aos locais que conhecemos, serpenteiam por entre localidades onde somos estrangeiros. O desconhecimento acaba por pincelar as serranias de verde onde o cinzento urbano já nada nos consegue colorir. Enquanto saboreio a viagem, curta, por não saber onde estacionar com o cuidado e zelo em não estorvar ninguém, um pouco como aprendi a fazer na vida, galgo a imaginação debaixo dos toldes e oleados da feira, assente no revitalizado mercado do Couto. Já por lá não andam damas e cavalheiros, cavaleiros e futuros reis conquistadores e guerreiros. Agora, pijamas cardados espreitam por debaixo das abas das calças desportivas, talvez saboreando a manhã fria sem que a riqueza dele se ria, repousando na chinela de plástico moldada por uma máquina gélida e cansada, em oriental escravidão laborada.
Do lado de lá da estrada, o lado de cá de quem por lá está, cigarros consomem fumadores austeros, sobrolho erguido, perscrutando veículos que abrandam, feirantes vendendo no pregão que cantam, a vara que brame o céu até atingir o cabide com o vestido desejado. O café carrega toldos desbotados pelo frio que se abate em flocos de solidão, viuvezes indistintas de género, futuros de costas voltas ao rio, lá ao fundo, dourado para uns, galego para outros, dos quais apenas os xistos metamórficos recordam.
Estaciono como posso, sobre o passeio, os piscas intermitentes pedem desculpa por mim, acendendo e apagando a urgência de avisar que, se tudo correr bem, demorarei pouco tempo. Imagino transeuntes contornarem a viatura, sem qualquer queixume, habituados que estão a ultrapassarem obstáculos nas vertentes umbrias das suas encostas, por vezes com toda a vida às costas. A chuva compadece-se de quem no exterior se afoita à vida, cai fina, indelével, quase permitindo que caminhemos por entre si sem nos molharmos.
O presente desenvolvido, ainda que parcamente contrastado a jusante, fica para trás assim que ultrapasso a fachada em recuperação de uma casa brasonada. Aqui, a simbologia granítica relembra a nobreza que a minha imaginação converte em realeza. A nação é de um aio, comprometido em fazer de parca ignição um flamejante raio. As paredes perdem o musgo secular, avisos de licenciamento e logótipos de gabinetes de arquitectura caiam as paredes e taipais que escondem a intenção dos plebeus. O caminho medievaliza-se numa calçada irregular, inclinada, estreita o suficiente para o carroçado por ali resvalar à força equina ou bovina. Passo um largo, o primeiro, depois outro, o segundo, literalmente, vergo-me à chuva que começa a cair com mais intenção a tempo de ver o que não pretendo calcar e encontro quem por mim espera.
A pobreza, quando é a própria riqueza mascarada, quase pede desculpa por existir. Indica-me o caminho pela escadaria de mármore escorregadio, manchado. Entro na casa de uma mulher só, enviuvada, de marido e alegria. Um queixume apenas pelo preço da botija de gás, de resto, oferece-me o que tem agradecida pelo favor, que educadamente declino.
Regresso. O Sol encima-se às nuvens negras, ilumina as encostas do Douro e espreita a grei sem brasão, que ficou comigo no socalco da minha mão.
publicado originalmente aqui: https://www.correiodoporto.pt/cronicas-do-nada/brasao
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No olhar embaçado do meu pai encontro o reflexo das sanzalas, picadas, regatos coloridos de peixes futuros e uma terra que paria abundância com a facilidade dos sonhos mancebos em terras distantes, separadas por um oceano nauseado em porões defecados por animais e o medo do desconhecido pelos umbrais.
O empoeirado estacionamento separado do restaurante onde seria o convívio avivava a ansiedade. A viagem sulcada em toada serena amanhecia junto com o dia de sobriedade amena. Subimos a escadaria do moinho, sorriem vigorosamente do fundo de uma vida envelhecida, rodeando uma távola circular, cavaleiros do ultramar. Nas minhas feições reconhecem os traços de quem me cedeu a genética, confundem-me com o Velhinho, sorrio da situação, bebo um café rápido e chamo a restante comitiva familiar, em terra alheia, amigos estranhos transformam-na em lar.
Com a cavalaria a caminho, cumprimento quem do nada me chama, arrebatando memórias tumefactas, olhares brilhantes de quem por dentro ainda navega num tumultuoso mar. Os velhos combatentes retornam à camaradagem fantasmagórica de uma juventude agreste, rude, escamoteada nas lapelas de quem medalhas urdiu, à custa dos filhos que a pátria pariu.
O vigor dos apertos de mão, que retribuo com um firme apertar do ombro, transformam-me num enferrujado unimog, cansado, quando me exibe a fotografia tremendo na mão cuja vida encardiu. Quase soçobro na narração tremida, desnudado no olhar distante e turvado, de quem foi moço e voltou soldado, em juventude amparada na bengala de madeira, retorcida, como lhe fez, soluça, a própria vida.
Os apelidos sucedem-se e a totalidade de uma nação cabe em todas as medalhas polidas com que tentam sarar as feridas. Um Jonas ou Jóia sorri ao contar sobre o verdadeiro Joina e o nome trocado desde sempre. Há quem nasça do silêncio. E há o Lemos, que foi do futebol, da caça e agora da pesca, o Cardoso, o Martins e todos os nomes do mundo. Partiram para nunca mais voltar, ainda que o tenham feito e, pasmemo-nos, se saboreie a primeira regueifa com manteiga apenas depois de vir de Angola, ido com um cabelo branco, regressado de cabeça alva.
Os familiares, ramificações de uma existência que o destino plantou aqui e ali, convivem o que sabem e todos, sem excepção, olham com benevolência, carinho e uma ponta de emoção, os septuagenários militares em conversas intimistas nas feições de garotos que assomam quando se reúnem, cochicham ao ouvido e se riem na meninice roubada e que para muitos morreu no além-mar.
O Antunes faz 75 anos, poderiam ser 20, mas antes da celebração o minuto de silêncio que se prolonga nas recordações a preto e branco. Os partidos vivos, a cores, do lado de lá da trincheira apontam afectuosamente os próximos a partirem.
Terminado o minuto eternizado, vão embora de braço dado os soldados. olho húmido batem continência, em paz, na suprema inocência.
Paz. O quão difícil poderá ser, rapaz?
Publica originalmente aqui.
No descerrar deste dia, que toda a noite seja o advento da luminosidade que nos absorve e faz sermos melhor hoje do que fomos ontem,
tolerantes, amigos, sinceros,
despojados na riqueza dum sorriso... Ver Mais
Ao cimo das escadas, o andor era solenemente enfeitado com a gordura condensada da fritura das rabanadas. O odor ameno a canela e açúcar amarelo, depois de embeber o cacete fatiado, adornava o resto do tecto que, por entre as marcas da humidade persistente, espreitava feliz para a estrela encimada na crista do petiz pinheiro de Natal. Resinoso ainda, adormecido entre os musgos arrancados com as mãos em fartos tufos às húmidas costas da pedreira, sacudia orgulhoso as luzes intermitentes que projectavam um firmamento iluminado do espectro visível de cada vez que se desligava a luz do candeeiro da sala, junto com pinhas e bolas de chocolate embrulhados no acetinado papel colorido, prateado, antecipando o adocicado travo na boca quando se deixa derreter o cacau com todo o tempo que a infância encerra.
Duas ou três travessas, atravessadas num canto da mesa da sala, sobre a toalha vermelha e branca, estampada com dóceis folhas de azevinho, jaziam profusas com temas natalícios polvilhados a canela, que se soltava como poeira estelar das pontas dos dedos da novel mãe cozinheira. O bolo rei mantinha o ar espantado, salpicado de frutos secos e corantes cristalizados num arco-íris bolboso, enquanto o queijo serrano esburacado no topo fazia de cratera num vulcão apaziguado, consigo e o leite de cabra.
Faltava pouco para a ceia de Natal. Os passos apressados tinham sido substituídos pelo caminhar de um lado para o outro no pequeno recinto a que chamavam casa e eu, inocente, gostava de chamar estábulo. Nunca o pouco fartou tanto como quando o nada que nos vestia não pesava o ego, e o sorriso que se cruzava connosco abria boas tardes e boas noites sinceras, sem comentários, votações, partilhas e discussões.
Quando a travessa soltara o seu fumo branco em cima da mesa e os talheres se aprumavam de lado do vidro temperado, alguns pratos tinham já um leito de azeite, alho, ovo cozido e sorrisos. Havia uma comunhão entre o ardor no peito, as calças de pijama, o menino Jesus que espreitava do presépio, a boca cheia de couve e a procura com a língua de uma espinha que se sentira num canto da boca. À medida que o prato se esvaziava, assim como a travessa aliviada do calor e do caldo da água das batatas e do bacalhau, o copo escorria-se num gole e tudo se encontrava de novo no ventre aquecido, restabelecido e feliz de uma ceia natalícia.
Assim que tudo se arrumara, lavara, secara e as mãos da cozinheira se embebiam no avental, também ele estampado num singelo motivo, despedindo-se do labor e prestes a entregar-se ao amor, cabeça no ombro do marido e pai, havia um tempo onde espreitando por entre o musgo, a magia descia do pisca-pisca do pinheiro e se colava ao nosso olhar de criança, sem nada haver a esperar, mesmo quando a idade avança. O silêncio dizia grande parte do que se ouvia enquanto a noite se digeria e o céu nocturno, escuro, pintalgado de estrelas ausentes, se debatia para encher de sonhos os mais inocentes.
Por arte mágica paternal, dentro da bota ortopédica surgia o que eu pedia (e a única coisa que na estreita chaminé cabia). A lanterna, já com pilhas necessárias e eu, ansioso, calado, com olhos húmidos, rasgando com cuidado o papel, abria a porta da cozinha voltada ao encantado arvoredo, sem qualquer frio ou medo, espreitava o pinheiro e o anjo (na verdade só lhe via a asa) e, fazia sinais para o céu, cheio de saudades de Casa.
publicada originalmente no Correio do Porto.
On naperons feitos de jornais e velhas listas telefónicas, recortados com o decoro próprio de quem suspira a vida e a mesma se verga sobre si, em deferência, ornamentam as prateleiras vazias de uma cozinha de chão de terra batida, negra. O tempo pára de cada vez que consulto a memória. Na Aldeia de Cima não há maior consolo do que uma lareira a crepitar na tarde de Outubro, lajes espessas, negras e sorridentes, panelas negras em tripé oxidado, traves cobertas de fuligem e as minhas calças penduradas num galho de austrália, a saborearem o braseiro dos grossos troncos ruborescidos. Três cachopos, na travessura cândida de escolher o mais profundo rego a percorrer, galochas esverdeadas e o futuro multicolorido pela frente, sem saber que, agora, esta tarde de Domingo me olha entristecida para o que não consigo vislumbrar.
Suspirava, a matriarca, bondade ao mesmo tempo que do fundo da arca tirava um tição negro em forma de pão caseiro, a faca rombuda que rasgava a côdea, a cebola lacrimosa sob o sal grosso e a caneca escura de um café fumegante que nunca consegui replicar. O maná bíblico saíra das escrituras e prostrava-se na tarde de um dia de semana maior que a nossa vida pueril. Três “tardalhos” em cuecas, a tiritar de frio, sorvíamos o café e ferrávamos a cebola salgada que se diluía no bolboso miolo do pão, enquanto o calor da lareira nos secava a roupa e a alma. Deus mostrara o paraíso, mas ainda me era pequeno o siso.
Algumas vizinhas tinham vindo à luz deste mundo pelas suas mãos experientes e saibrosas. Quando a parteira chegava, já os principais preparos estavam a plenos pulmões berrando como um cabrito tresmalhado num final de dia, parido em colmo, na bacia de água quente e as tolhas que pediam licença à candura das mãos experientes. Deus escolhe a dedo quem nos trazer a este mundo sem uma gota de medo. E sem muitos ais.
Nunca encontrei as palavras certas para entender a minha raiz de urze, a paixão pelo negro lume de uma tarde chuvosa, a navalhada firme num naco de pão, a cálida existência no olhar de paixão, o acolher sobre a asa de ganapos tresmalhados como filhos e netos, sem distinção. Urdi, durante a tarde, as palavras que dignificassem o seu sorriso quando atravessava a estrada para um beijo repenicado e um sorriso tímido e sincero, que fazia o firmamento corar.
Escrevi um soluço em forma de nuvem, uma amêndoa adocicada, um copo de vinho fino e a preocupação com as ovelhas e coelhos que, na sua inocência, preocupavam o espírito tresmalhado. O abraço prolonga-se na medida da saudade, o reconhecimento do privilégio de termos caminhado na sombra do seu avental é prova irrefutável de existência suprema. A humilde simplicidade rarefeita, pureza de uma vida de nove décadas e meia, suplanta todo e qualquer ensinamento humano, mundano.
Numa ascensão serena que o tempo admirara, o próprio Criador desceu e levou-a pela invisível e luminosa porta, entretanto aberta, chamando todas as estrelas de Julieta.
Originalmente publicado em: https://www.correiodoporto.pt/prioritario/julieta
O Outono chega orientado pelo rumo da nortada. As nuvens cinzentas cinzelam o verde escuro, ainda imaculado, pintado nas encostas das serras ao fundo, placidamente a observarem o azul do mar.
A viagem, iluminada pelo Sol a reflectir-se orgulhoso nas águas do Atlântico, ziguezagueando a estrada e, também, os pensamentos, fez-me mais temperado que o barulho das ondas celestes supunha. Ao sair, a frescura de final de Agosto, quando a há, como hoje houve, chamou o zéfiro para, certamente, se rirem ambos de mim, incauto turista na baía e, confesso, na vida. O vento, agradável, puxa-me as mãos para o fundo dos bolsos e sorrio ao ver-me arrepiado em pleno Estio. Tinha razão, o frio. Ainda que não em demasia, tirita-me até que o corpo se habitue ao térmico desnível e, depois, recomposto, me indique que posso iniciar o passeio.
Seios exibem-se, sem pudor, libertos da indumentária quotidiana e sorriem ao verem os seixos redondos na desembocadura da maré que se afasta, vazando-se, expondo pequenos e marinhos petiscos que outros, de balde na mão, apanham.
Na praia, uma cabeça alva imita os corvos-marinhos, surgindo e desaparecendo uma braçada depois, para, novamente, repetir o mergulho ritmado em largas centenas de metros. Ao sair para o areal, envergonho-me da minha fraca forma física, em contraste com o sexagenário nadador, que, sorrindo, agarra a toalha da cor da areia e afaga-se, ofegante, até secar o corpo oceânico que Neptuno lhe deu. Atrás, a caravela Pinta relembra os olhares salgados dos marujos que perdeu.
Ao longo da calçada curvilínea, as lojas exibem um cansaço veraneado nas suas portas fechadas e grades corridas, poucos transeuntes além de nós. Na zona dedicada a refeições, à porta dum restaurante, um homem limpo com indumentária suja sacode a roupa, tira o casaco roto no cotovelo e de golas desbotadas, passa uma toalhita na face que um funcionário lhe deu e sorri. Seria ritual necessário, noutros ausente, para trocar as esmolas por uma refeição quente?
A pobreza não tira férias. Nem a tristeza. Entro numa pequena capela erigida por entre ruas pirateadas por lordes ingleses. O luto de duas irmãs contempla de olhos lacrimejados as brincadeiras de uma criança, que perguntando o nome dos santos dos altares ostentando embarcações pesqueiras, brinca, de banco em banco, e assoma um sorriso às faces de pranto.
Saídos das ameias, há faces conhecidas em terras alheias, que respondem em abraço ao encontro inusitado e fortuito. Vai-te contigo e em todo o lado tens um amigo. Não é assim o ditado milenar, mas poderia ser. Sermos casa quando a idade esmaecer.
Os ensinamentos e sentimentos de uma observação, sem as conseguir evitar, não cabem no interior de um texto. Tal como a protecção dos marinheiros, encomendada aos santos erigidos nas rochas, não cabe dentro dos muros das muralhas. Tantos deles no mar, regressando a casa salgados, em mortalhas.
Originalmente publicado em: https://www.correiodoporto.pt/cronicas-do-nada/nortada
A rua exibe o mesmo tom juvenil de sempre, na ausente sombra dos eucaliptos, decepados num coto estirado em súplica ao céu. As árvores choram, não pela dor, mas na nossa manifesta falta de amor. Sob um empedrado caminho que traz comodidade, sem conforto, jazem estirpes que gretaram paredes e muros, na profunda harmonia entre a natureza e o impropério, senhoras do seu império.
Gatinhava ao som dos adultos, os joelhos sujos na limpeza de uma diversão pirralha, berlindes, caricas, carrinhos nas garagens construídas nas raízes que connosco brincavam, os carreiros de pedrinhas e meia dúzia de criancinhas na protecção atenta de um Deus que a si começara já a levar alguns seus. Quando, inusitadamente, o estio trazia uma tarde de chuva, sem secar o que, no tanque, se tinha roçado, torcido a água e sabão rosa nas finas mãos grossas maternais que chegam agora à idade de quase serem saudade, íamos no cuidado inexistente para o caminho lodaçal, fechando represas com ramos e terra, quais castores pueris na represa da juventude. E quando a noite se aconchegava ao torpor do cansaço, havia forças para esperar pelos pais ao fundo da rua e, com eles, fazermos a subida, nesta que é a travessa da avenida da minha vida.
Crescemos e fronteiras erguem-se limitando o acesso ao monte que era o palco das nossas brincadeiras, um terreno mágico que se metamorfoseava a cada vez que entrávamos, estádio de futebol onde jogávamos ao lado do Zé Beto, Bento ou Damas, grand canyon palco de tiroteios amigáveis e honestos, onde bastava um – Tau, acertei-te! – e a sinceridade (um fedelho lá sabe o que é maldade?) obrigava a sentar no chão, deitar sobre o musgo seco, ver as formigas abstraídas em afã alheia às tropelias da canalha, enquanto a troada de pistolas e carabinas invisíveis continuava, ecoando na quente tarde e na paciência de alguma mãe que, aleatoriamente, pendurava no estendal, entre dois pinheiros simpáticos, a parca indumentária que nos vestia, dignamente e em quantidade mais do que suficiente, sem ostentar logótipos que nunca acrescentaram nada ao que nos vestia. Eramos felizes e nenhum de nós o sabia.
Percorro a rua passadas longas Primaveras. As matriarcas ainda me recebem no sorriso que me viu crescer para adulto, mas ainda as admiro como petiz: – Pareces mesmo o Sr. Dinis! – ouço em tom força e labuta de mãe que nunca cede a uma luta. Portas entreabertas, passos delicados e cuidados, maleitas que se acomodam ao passar do tempo no corpo, um ou outro fantasma que me visita e que todos pensam estar morto. As fotografias esverdeadas de sorrisos multicolores e tímidos, cheios de esperança, são ainda o que me veste com indumentária e olhar de criança. As louças já não tilintam, os camiões verdes carregados de areia e brita deixaram de terramotear o mundo infantil, as portas e muros diminuíram na proporção do meu crescimento e, creio, talvez seja este o meu maior contentamento. As memórias, tal como eu, nunca ambicionaram ser mais do que vida sem nada mais expectar, além de serem elas próprias, a brincar.
A toponímia desta existência tem o nome de todos que comigo cresceram e viveram. Nunca dali saí e, contudo, sinto que já lá não mora aquele que me cresceu. Talvez seja eu, agora, coto decepado estirado e esquecido da minha ligação com a casa, com o céu.
Originalmente publicado em https://www.correiodoporto.pt/cronicas-do-nada/a-travessa-da-avenida-da-minha-vida
O céu ameaça, intimidado talvez pelas previsões dos entendidos com os seus smartphones, uns trovões sérios, relâmpagos como castigos divinatórios e chuvas que virão lavar as ruas, excepto se vierem na hora de procissão e, aí, vêm é estragar a festa.
Os caminhos que percorro agora, de carro, contrastam com a minha grata e infantil recordação de ir a pé para a catequese aos sábados, no início da tarde. Os paralelos sucumbiram ao peso das preocupações adultas de quem por lá passa, sendo agora cristas graníticas que soçobram à terra e ervas que o tempo ainda não capinou.
Estacionámos. Saio na inocência de quem estreia umas sapatilhas novas e percorro com reverência o espaço por detrás de Pedro, orgulhosamente crucificado ao contrário e quase consigo escutar o jocoso riso dos romanos, de açoites ensanguentados pendurados à cinta e mãos lavadas debaixo do olhar dos pescadores em segredo. Os bolbos do jardim engalanam-se quando as fotógrafas surgem e capturam memórias que o tempo verá afixado na vitrine da loja, cachos dourados sobre os ombros, o sorriso à mostra, a mão aberta sobre o joelho, o queixo segurado pela vergonha ingénua, o padrinho e a madrinha agora e, rápido!, rápido!, os pais antes que comece a chover! As nuvens negras riem-se da situação.
A catequista chama-os e apressa o fotografar da pré-festa de Pai Nosso. Alguns correm escadaria acima e dão trabalho aos anjos da guarda de serviço, que velam pela corrida segura até ao reunir em U na sala, afinando os preparativos finais. Vejo a minha antiga sala, revivo a secura na boca pela ansiedade da minha vez a benzer-me no meio de todos, o gaguejar numa oração heptafrásica que ainda não conseguia compreender na plenitude. O salão que recordo enorme é, no momento, um cubículo na minha imaginação. A mesa gentia preparada com brio é, agora, com a tolha de renda branca, a vela solitária e a cruz tosca, senhora de quem se É, um altar solene, em nada destoando o computador portátil e o projector que, emocionando-me, faz chegar à parede bolorenta uma imagem pouca semelhante ao que Jesus terá sido, ladeado por oito corações vermelhos, com os nomes dos garotos e garotas que escutam, ainda que em segunda voz, o que Mateus ouviu na montanha quanto ao que deveríamos dizer quando quiséssemos rezar.
A cerimónia, rematada no sermão final por um senhor trovão, sem diocesanas presenças e testemunhada por assessorias orgulhosas e voluntárias, continua no lanche partilhado onde todos deitam mãos às cadeiras e mesas, por entre rissóis e batatas fritas, bolas variadas e variados bolos, brincam os pequenos recém-empossados às escondidas, numa miscelânea de termos que já perdi no entendimento, saltando o palco e as escadarias, vão por onde não devem e assomam à sanca do perigo.
Sem que por eles dêem presença, assoma Buda agarrado a Shiva, placidamente dizendo a Jesus – Deita os olhos a essa fornada que se promete a Ti, precisamos de todos!
E Ele, Sorrindo, Escondendo a Face no braço encostado à parede, enquanto a pequena se esconde o melhor que pode, Remata:
– 48… 49… 50! Preparados ou não, aqui vou Eu!
(publicado originalmente em https://www.correiodoporto.pt/prioritario/pai-nosso).
Havias de ter ido, foi a frase que ouvi quando, ao sabor ameno do calor que a parede da cozinha transpirava, chegou à minha beira no cálido final da tarde de sábado. Os hinos monótonos a Nossa Senhora de Fátima ecoam pelo pequeno vale, agora despido, e aliam-se à fé trémula de quem se aflige no mundo, sem se deter muito nele. A banda sonora monocórdica, à guisa de veleidades supérfluas, dá o mote para a explicação da minha ascendência genética.
O caminho, para lados da margem esquerda do Douro, pelos socalcos de escórias naturais que a litosfera cuspiu, ainda que perto da estrada nacional 222, virava por caminhos de terra batida (e abatida) que a freguesia pariu. Foram necessárias umas centenas de metros percorridos a pé para revolver a distância entre a carrinha e a habitação, ilhargas e cabeceira, peseira e estrado, máquinas e colchão. Os muros empedrados assobiavam de solidão com a ajuda do vento. O rio dourado ali ao fundo, percorrido com opulência pelas barcaças aladas prenhes de turistas endinheirados, sorri pelas curvas de um relevo que as barragens abafaram. É agora navegável, pachorrento, senhor de si mesmo, órfão de Torga. O tempo progride. O homem agride.
As casas ladeiam o caminho, cogumelam-se como podem agora que os habitantes, por idade, por cansaço, vítimas do político abraço, sucumbiram à passagem do tempo e se fizeram ponte entre mundos.
Há ali umas casas que aproveitadas para turismo… Concluo o pensamento com o meu habitual negativismo, o turismo é-o para quem quer, uns em espelhos de água com vista para a pobreza, outros de garfo e colher. A vida quer-se, por ali, se longe da pedreira, na modorrenta existência de bem com ela mesma, a ver os montes branquearem entre o Marão e Montemuro.
Pelo meio do vazio moravam um punhado de pessoas simples, herdeiras Dele, esquecidas por quem se transeunteia nas tarde de Domingo entre canais de televisão, vendo os carros passarem, olhos no mundo, pés no chão, cigarro amortalhado ao canto da boca calada, no esgar dolorido de quem viu a vida passar por entre os dedos grossos e toscos que outros escravizaram.
O serviço foi feito. Mais do que o pagamento, acredito, vieram eles de vida ao peito.
A criança, de colo, estendia os braços como um jovem tojo a esbracejar e lutar por uma nesga de Sol e o maiorzito, uma tríade de anos a ver a vida desaguar em barcos de papel e caricas lançadas ao pé saibrento do caminho que ninguém percorre, pedia
– Dás-me um abraço?
E que há-de um homem fazer, com filhos assemelhados a irmãos, do que estender os braços poucos habituados a semelhantes ensejos, e, de olhos fechados, ajoelhar no soalho e aceitar a inocência pueril concedendo-lhe os seus desejos?
publicado originalmente no Correio do Porto, aqui.
Alheado à indiferença de não ser apreciado, o diospireiro adormece na tarde de sábado ao som do vento a sacudir os ramos dos limoeiros, que batem à janela da garagem iluminada pelos copos transparentes onde sorriem chamas que apenas fornecem um ambiente bruxuleante às horas esparramadas no sofá, feito com paletes de madeira fumigada.
A música ecoa nas paredes aquecidas pelo aquecedor a gás, a coluna Bluetooth amorna o ambiente em tonalidades condensadas que lacrimejam os vidros. O silêncio, incomodado, encosta-se apaixonadamente ao ruborescido que emana da mufla, transpirada, de calor e peças de cerâmica. Não só no fogo se forjam estrelas.
Primeiro era o vazio. Pousado na bancada, o criado criador prolonga e cria a lastra que se esparrama, satisfeita, no tampo laminado, até ganhar forma luxuriosa por entre os dedos experimentes do ceramista. Do pó vens, ao pó retornarás. Neste caso à argila. O homem, tal como Deus, não vacila. Enformado e desenformado, do braseiro hipnotizante ao amontoado de serrim e jornais, as peças sufocam e soltam seus ais. Eis-te concretizado, oh de Deus criado.
De costas voltadas à tarde, os pingos de chuva que se fazem aguaceiro sobrepõem-se à musicalidade ritmada. Pára-se a música. O silêncio desencosta-se e faz-nos companhia agora. Insensível à insensibilidade humana, a ilustradora ilustra o ilustrado que não conseguimos ver, a mensagem por entre sussurros que nos chegam, agora, dos ramos do limoeiro. Ah, bastam amigos para nos ruborescerem em braseiro. Sem abraços, que somos nós, além de árvores tumefactas sem voz?
Na paleta de azulejos, os diversos pincéis vão tacteando o que se fará vidrado. Todo o mundo poderia assim ter sido desenhado. E pintado. Há constantes misturas de tonalidades num discurso anti-racial, não vem a nada disto algum mal. Motivos florais, santos, pecadores, todos iguais. A história ganha um contorno visual cujo relevo se revela no sorriso florido e no olhar sensibilizado pela beleza do que se desenha. Uma imagem escreve mil palavras quando não sabemos escrever o inefável.
Os últimos traços do pêlo de marta acariciam o final da tarde de domingo.
Sem que se apercebam, o Criador veste-se de inspiração, molda-se ao braço da criação e no gesto sorridente de quem ilustra, num sopro vital, seca a pigmentada placa de cerâmica, o quadriculado painel de uma tela infinita. A ilustradora volta-se, sorri-nos, há uma concordância em género e estilo com o silêncio que, entretanto, tinha pedido aos ramos do limoeiro um pouco de sossego. Poderíamos vê-los, mas o mundo é cego.
Publicada originalmente no Correio do Porto, na secção Crónicas do Nada..
A tarde de sábado, com um vento frio, traz consigo a última saída de casa de um octogenário jovial, sorriso fácil, tracto doce. A aldeia, apesar de vila, habita-se ainda dos idosos que resistem, enraizados, ao soluçar da passagem do tempo, testemunhas que são de um progresso que trouxe comodidade ao corpo, mas vazio às pessoas. Somos todos o classificado algoritmado potencial cliente de algo. Quem nada compra, nada vale. E quem nada vale não tem valor. Há quem lhe chame solidão. Há quem lhe saboreie a dor.
O sobretudo negro pesa-lhe tanto nos ombros como as translações completas a um astro que o Homem habituou a respeitar. Cumprimenta-me com um acenar de cabeça. O sorriso quente que me aquece, debaixo do toldo do café, abrigado de mim mesmo. Dirige-se à montra do minimercado, por entre cartazes de festividades com horários para visitas filarmónicas e dos recentes “procuram-se trabalhadores”, uma folha timbrada, cinzenta, o logótipo de uma funerária, uma fotografia colorida, antiga, um nome encimando-a e, por baixo, entre parêntesis, a idade. Há um reconhecimento de fim de ciclo natural, o tradicional descanse em paz, o animado foi desta para melhor e o silenciado boa viagem de regresso a casa.
Volta costas e olha-me, há uma rua vazia entre nós, os buracos da incúria e desleixo desenham o relevo do que nos separa, várias décadas e um punhado de acenos amigáveis que me habituei a saborear. O vento corta-me a feição, o sorriso circunstancial não convence o final de tarde, cujo Sol poente mareja de alaranjadas sombras e inusitadas e rosadas nuvens tecem teias celestes, não vão os sonhos escapar. Neste olhar, quase tudo me foi dito. Um amigo que parte. O peso da idade e da perda sobre o tecido que o cobre abate o sobretudo cansado.
Sorri-me. Sorrio-lhe, sério. Encolhe os ombros e neste içar e abater de braços, feição, corpo, o próprio sorriso se esvai deixando o cumprimento para um resignado esgar cujo pensamento, se se pudesse escrever, diria “o próximo serei eu”.
Vejo-o entrar no jardim e, depois, ao esconder-se pela sombra da casa quase inabitada, um vulto conhecido, já partido, aconchega-lhe a gola do sobretudo ao pescoço. Um filho sabe sempre tratar dum pai.
O final da tarde traz o esbranquiçado fumo branco do fogão de lenha, apaga-se, o lume e o homem. Sei-o, porque mo disse, que é chegada a hora de se aquecer na cama, o fogão só lhe aquece para onde está virado, o cobertor fá-lo por todo o lado.
Não apenas os montes se afundam. O vento atiça os zimbros de um fogo gelado que consome mais do que a própria solidão. Imagino-o envolvido por um aconchegante molho de recordações de vida preenchida, quando me recordo da nossa conversa, eu na vida consolando-o o possível pela perda do filho e ele, sorridente, no jardim, “olha rapaz, também eu irei, quando Ele se lembrar de mim”.
(publicado originalmente em https://www.correiodoporto.pt/prioritario/dia-de-um-pai)
- Ela está sozinha.
Foi a primeira frase da matriarca, ainda antes do proverbial bom dia, com que me deparei na sorumbática manhã de sábado, talhada pelos latires ansiosos do canídeo. O gato, senhor de si mesmo, chegou, viu e venceu, marcando o território, neste caso o celofane transparente que plastifica a protecção singela da ilharga do roupeiro. O cão, senhor de outros, fareja, segue-lhe os passos e as secreções, urinando com mais veemência. Ausculto o diálogo monologado da senhora, sexagenária tardia e mãe da cliente, onde a labuta universal de uma vida voltada à adversidade com um sorriso valia o epíteto de profissão. Aqui há os sardinheiros, os pedreiros, os charés, os presuntos e outros que esqueço agora, na sombria tarde de domingo, onde o ecrã do computador aquece o leito sobre mim mesmo, na camisola de lã cingida ao que me prende à vida (a qual me orgulho saber não existir). Os nomes de nada valem, embora se me colem ao palato como o copo afundado num Porto licoroso, rubi, cujo teor me confundirá, como sempre, nas vozes ausentes que se colam aos meus sentidos.
Depois de estacionar e descarregar a carga e a mim mesmo, estaciono e percorro a rampa empedrado que, resvalando-me, me levaria ao Paiva, não fosse a matinal sabedoria do sábado acautelando-me os passos. Duas catraias vestidas num tardio corso perguntam-me o que faço por entre duas mordidas num seco molete e um esbracejar duma varinha de condão, com as asas esverdeadas e esgar sorriso ladeado a batom vermelho infantil. As paredes multicoloridas dum interior paupérrimo, o quarto aberto numa tijoleira acastanhada parecem imitar o presépio proverbial de uma adolescência votada ao abandono paterno. Os balcões das tabernas serão sempre mais inebriantes que a canalhada ao colo numa tarde inverneira à frente do fogão de lenha. Mas muito menos prazerosas.
Entre os haveres sobre o roupeiro antigo, encontro uma empoeirada fotografia de casamento que é rasgada no imediato e à minha frente. Um sorriso escorre na face cuja ruga amortece a lágrima azeda de uma memória perdida “Tivesse eu partido uma perna e aberto os olhos, mas no meio disto tudo, sempre me deixou os meus tesouros” e olha para as pequenas fotografias de dois mancebos louros e sorridentes, que lhe levam o parco salário e enchem o coração. “Vou ver agora o jogo de um, faço de mãe e pai” e despede-se quase com uma desculpa por ser assim, simples, humilhada por um gentio, acomodando um saco de cereais de chocolate e passando a mão na ombreira da porta da garagem aproveitada para habitação. Um lar é-o onde nos fazemos lugar. E amar.
A mãe vê-a sair, conta-nos pormenores privados que lhe embolavam a garganta e a alma, pede-nos para medirmos o balcão inexistente da cozinha. Será um presente para a filha. Prometo-me a mim mesmo que se algum dia me for facultado mais do que preciso para o próprio dia, levarei àquela a casa a fartura cuja míngua lhes faz a vida dura.
Terminado o trabalho, a mãe, avó, amiga, cliente e peixeira, despende-se com a ternura de quem pelos seus zela:
Ela está sozinha. Mas nós estamos com ela.
publicado originalmente no "Crónicas do Porto"
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Nada atemoriza tanto, nem cativa de forma igual face a tudo o que encerra, que uma folha branca num caderno onde sonhei depositar sonhos. Não me parece existirem montes suficientes onde eu possa desfrutar, na mão cheia de dias de vida que me restem, de um pôr-do-Sol empoleirado numa rocha.
O colorido Sol que se aninha por trás de uma colina adivinha um tolde cinzento salpicado por cinzas pequenas, trazidas pelo vento, para que ao longe todos se apercebam da tragédia que são estas labaredas. Talvez seja um desesperado acto de consciencialização, as árvores, flores, vegetação e talvez até animais, que se deixam consumir em carvão e farrapos cinzentos, a cinza que se respira, que se aloja no nosso corpo e se transforma ou reforma dentro de nós, encostadas ao nosso âmago, aconchegando-se àquilo que nem nos lembramos de possuir, um coração, para que possam sobreviver mais um pouco.
Acredito que sejam estas cinzas que choram quando o meu corpo as leva, sem saber previamente, ao local onde elas próprias se cinzelaram. Não queimaram ali, mas a cinza (ao contrário do ser humano, sente e por isso sabe-o sem dar lugar a incertezas) vê no negrume do queimado as suas próprias mãos, ramos e sonhos. Uma árvore é-o aqui como é num outro monte, não há duas árvores, nem tão pouco uma floresta, uma árvore é a mesma árvore onde quer que esteja e não será, parece-me, por nós não o sabermos ou acreditarmos, que ela deixará de o ser e de sentir sua a perda de outras, assim o pensámos, árvores. Temos tanto a aprender com elas…
Vamos aprendendo o que outros sabem, sem grande margem para aprendermos o que nós próprios nos ensinamos, parece-me que corroborar algo escrito se torna o caminho mais fácil quando o escrito está já institucionalizado. Percorremos as estradas que outros, a seu tempo, traçaram e, convenhamos, bem o fizeram, mas não será este o tempo de nos cansarmos dos mesmos caminhos e dar azo a que novos trilhos surjam, aqui e ali, primeiro como indeléveis percursos de vegetação calcada, gravilha depositada, serpentados atalhos daqui até ali, para darem origem a alamedas que, depois de abertas, surgem tão óbvias que nos fazem indagar, como raio é que não vi isto antes? Até aqui a vegetação, as árvores, nos prestam o seu legado ao serem elas mesmas a dizer, vem por aqui, olha como me prostro, para que vejas este caminho. Serão elas, brevemente, a dizerem, perguntarem, não estás farto desse caminho? E a indicarem, a quem as quiser ler, que não sobram espaço nos livros para os mesmos caminhos, que há necessidade de mais, ou menos, e à medida que nos libertamos do peso daquilo que conhecemos vamos subindo, descendo, em espiral até ao momento em que este corpo será forro para o caminho que as árvores percorrerão e nós perderemos as dezenas de gramas que alguém pensou serem o peso da alma, mas a alma não tem peso ou massa. Estas dezenas de gramas são o correspondente às cinzas das árvores que nos fizeram caminho e estavam, há muito, alojadas no nosso coração.
Dia virá, como o vento, como as pessoas que passam neste trilho, em que saberemos o caminho para casa e as árvores não tenham a necessidade e quase obrigação, como espécie mais inteligente, de se sacrificarem e em cinza subirem connosco para que aprendamos: o caminho não é senão o que fazemos imóveis.
(in Bird Magazine, 2017)
As cinzas dormem esquecidas do fulgor da noite anterior, repousadas na espessa pedra cujos pés das panelas negras fizeram as covas onde se acumulam as memórias do que não se sabe cozinhar. Por cima, o presunto defuma-se e as teias de aranha ondulam sob o peso da fuligem que o vento, aproveitando as telhas mal sobrepostas, anima.
A noite de Natal, ao contrário das outras, traz consigo o barulho bater das portas do automóvel de cilindrada elevada cuja toponímia automobilística ostenta brasões de cantões difíceis de pronunciar. Depois da velha porta de madeira abrir e se ouvir o tilintar da pequena persiana que serve de coberto para a caixa de correio, ouvem-se os miúdos descerem chapinando o tempo e a chuva que se infiltra por onde quer que se olhe.
A aldeia ilumina-se de alegria, não há pinheiro que resista aos cavaleiros perdidos que regressam ao lar que os viu parir. Os gorros sobre as orelhas e as felpudas pantufas contrastam com os chinelos negros da matriarca octogenária de luto vestido pela memória de quem se sentava à cabeceira da mesa cujo tampo de inox vê, hoje, toalhas de papel em que pontas se rasgam para que miúdos, às escondidas, imitem vícios de adulto e enrolem pequenas cigarrilhas cujo mau gosto desencorajará, felizmente, aventuras maiores.
As memórias tropeçam e espreitam pela pequena janela nublada da cozinha. O louceiro e os púcaros alinhados não permitem grandes veleidades natalícias, a mão que se limpa ao avental azul e o desaperta, para passar as mãos nas fartas cabeleiras dos pequenos e, depois, o beijo destreinado nas faces cuja canalha acolhe com um franzir de testa e o sorriso pelas cócegas que o buço incita. Há um respeito pela simplicidade de uma casa em formato de manjedoura. A natureza curva-se e chora de emoção por se sentir amada.
Ontem o braseiro uniu família, até os vivos apareceram. A distância do céu ao coração dos que ficam é curta. Tarde na madrugada os carros de matrícula estrangeira arrancaram rumo à cidade. Levaram com eles a saudade. E hortícolas que a terra, em agradecimento, desabrocha a quem a ama.
Abotoado o avental azul, sacudiu da borra de café os pequenos grilos brancos e verteu no púcaro metálico o silêncio a fumegar. O papel colorido rasgado contrasta com o cinzento das paredes. O café amorna o palato e o sorriso tímido de quem está em paz com a vida. E com a dor.
As cinzas, que dormem esquecidas do fulgor da noite anterior.
Publicado originalmente no Canal N.
Na base da estrada, junto ao desnivelado passeio, vejo a escadaria alva piramidalmente subindo e lamento o meu despreparo físico. Suspiro e inspiro a ideia de que percorrerei aqueles degraus várias vezes até, por fim, cansado, sobrar tempo para rematar o trabalho, ou ajudar a rematá-lo, pois sou tão amador nesta arte, como a deitar uma mão cheia de palavras à terra e ver nascer uma frase.
A simpatia usual acolhe-nos abrindo a porta do coração, pedindo-nos desculpa pela casa estar desarrumada. Há pessoas que vivem e quase pedem desculpa por viver (é deles o reino dos céus). Olhando-me do fundo de uma altura que a vida não deixou crescer, sorri. Diz-me irmão de meu pai, o que desperta na fisiológica versão mais velha de mim um sorriso. E volvido o engano, desculpa-se novamente. No meu proverbial silêncio respondo com um encolher de ombros sorridente. Ao fundo do corredor, do canto da sala, uma Nossa Senhora de cerâmica com quase um metro e noventa observa-me os passos.
Na cama, jazente, o marido sorri por detrás de uns óculos grossos e uma cara diferente, muito diferente dos retratos de mocidade que ornamentam a parede. Prostrado, aprisionado num invólucro que a pouco responde, como se o corpo não encontrasse forma de se ligar à vontade, vê-nos começar e brinca ao dizer estar a ver como se faz, para depois fazê-lo. “Foi um aneurisma” diz-nos a senhora e para mais não deu, pois pede-nos para começarmos pelo outro quarto, estavam a chegar as Senhoras do Serviço de Apoio Domiciliário. Batas brancas, mãos de látex, rostos que transportam candura e amor na religiosa tarefa de assear, higienizar, sanar, enobrecer o vigor que deixou de responder e, no final, encher o peito para que o orgulho não encontro deglutição e soltar um “Parece um rei levado ao colo por duas mulheres!”.
Voltamos ao quarto, há meia dúzia de dezenas de minutos para que tudo se encaixe, enrosque, aparafuse, afine e limpe. E por entre estes, já sem as angélicas figuras de avental cujas máscaras não escondem a face de quem faz o que ama. E ama o que faz.
Ouço a história, o desabafo repetido de quem me diz que agora que podia estar bem, aconteceu-lhe isto. “Mas Deus é muito meu amigo”. Diz-me que vendia peixe numa carrinha com o marido, as histórias dos calotes das freguesas, as façanhas para reaver o valor (ou os bens) que por lá ficariam à sombra do desavergonho, o marido que “ele é bom demais” se enfiava no volante para não pedir o que era dele. Escuto, rangendo-me, as histórias do marido, abandonado numa instituição para onde os serviços sociais do hospital tinham persuadido a enviar, a alimentação pela sonda porque dava trabalho a dar de comer, a voz calada e os quilos que ia perdendo, talvez para ser mais fácil a morte ir chegando, a completa paralisia de quem já viver não sabia. “Há-de vir busca-lo para levá-lo num caixão. É coisa que se diga? Tive que ir a uma psicóloga!” E o filho “é muito meu amigo, está na Bélgica”, vendo a mãe soçobrar o vai buscar à instituição (poderei chamar-lhe prisão?) com a ajuda do Presidente da Câmara e o coloca, agora, aos cuidados de quem a este mundo vem ajudar. E amar.
Sorrio-me com os progressos conseguidos “já come sozinho. Já viu, como Deus é bom?” Mais cego é o que não quer ver. “E agora que fala é que consegue contar o que passou lá em cima, na instituição”, a fome, o que ouviu sem poder responder ou contar, o quarto sem janelas, o quanto queria ter morrido, “mas agora, ó, já sorri, vê as notícias, come sozinho. Tenho fé” e vira o olhar para as restantes imagens de santos e santas alinhados nas paredes.
Despedimo-nos do marido, o pacífico sorriso não mostra que já esteve no inferno, aprisionado dentro de si mesmo e usufruindo agora da liberdade constrita de conseguir segurar um garfo ou uma colher.
Já à porta, a senhora chega-me o casaco que ia ficando esquecido sobre a colcha. Sobre o soluço reprimido e sem ceder ao mais do que legítimo lamento, olha para o marido e sem se queixar uma única vez, ao longo de toda a manhã e narrativa, remata “já viu que grande milagre Deus fez?”
Publicado originalmente no Correio do Porto aqui.
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Nascente
(originalmente publicada no CanalN, acessível aqui: https://www.canaln.tv/cronica-nascente/)
Tinha estado virado para o mar, catraio entretido com o avançar e recuar das ondas a meus pés alvos, desconhecendo que nas minhas costas o ondular marinho dobrara terras, criara serras, eriçara pinheiros, sobreiros, oliveiras, carvalhos, castanheiros.
Ao ritmado canto das ondas caindo sobre elas mesmas, sobre o olhar ladino de um ou outro seixo, nas minhascostas a vida fazia-me frente. Eu apenas não sabia, inocente.
A maresia sobrava presa nas dunas, enterrava-me na areia, o mar como traquina borbulhara nos dedos a arfar. Pensara eu que me convidava a navegar.
Quando o Sol se pôs nas águas que pareciam ondular acima do próprio oceano, piscou-me o olho a saudade. Afogava a cidade. Quase caído ao firmamento, convida-me Febo em inusitado lamento, voltar costas à maré, sulcar novos horizontes e, eis, imponente, Trás-os-Montes.
Havia toda uma ilha imensa rodeada de um mar de pedras por onde falavam torgas.
Empurrado pelo tempo, cada planalto fizera-se monumento.
O silêncio incitava a ensejo dos dias a voltar, ir e regressar, sempre pelo mesmo carreiro por onde a chuva se fará ribeiro.
Despreparado, o corpo fugia na agrura de uma lavoura, escondido na lenda de uma moura, o calor atirado como uma onda, caído de costas no cansaço da monda. Ah, o corpo. Amadurecido. Que mulher um homem poderia ter sido. Ou o homem, dela parido, que a ela quer voltar. Ao borralho sabe-se o tempo amar.
Poderia ser assim o relato do meu mergulho no ameno entardecer rural, mas como explicar a paixão, se nunca se saiu do chão?
Ainda hoje me vi do lado de lá, duas vezes, agarrado a um vinhedo podando, sentado na beira dum fontanário a molhar a maçã que pedi emprestada num pomar.Encontrei-me nas duas vezes. Agora, saboreio a filha da macieira nas mãos meladas da videira. Aqui, Jesus teria nascido numa eira.
Na primeira vez que vi Trás-os-Montes fechei os olhos.Na segunda também.
E compreendo-me agora, sem muitas palavras.
Todos os rios debruçam-se ao mar. Eu navego-me diferente, sou da nascente.
(publicada originalmente em 17/11/2022 no Correio do Porto em https://www.correiodoporto.pt/prioritario/shabat)
É dia do Senhor. Faz sentido. O mundo pára e descansa, o Criador espreguiça-se da laboriosa, embora fastidiosa, tarefa de olhar a sua obra, o momento profano em que criou o humano. Galgo as margens do Douro, enveredo nas serpentinas alcatroadas que ladeiam as veredas esverdeadas onde, em tempos de limpeza de valetas, na ausência de cantoneiros, outros de roçadora na mão ou debaixo do sobreiro protegido à escondida da chuva, atrás do suor e da viseira de rede, abrem alas à procissão quotidiana e incógnita. É sábado e é isto que me pede o meu pai. Pai. Ambos.
Várias dúzias de curvas e chegamos. Portas abertas de par em par, a corda da roupa que se iça para que a manobra permita aproximar da porta de entrada e afastar do esforço de descarregar. Sem o saber anoto-me, fitando ao longe os montes de costas voltadas ao Douro, o Sol a escorrer-se na manhã fria, a vizinha provocadora que assoma à janela com testos de alumínio soltando impropérios, ela e os testos, metalizando a chegada ao destino. A mina seca como uma garganta horizontal de um precipício sem fundo fita-me em desafio. Décadas atrás e por lá entraria de lanterna em punho e medo a tiracolo.
Embora resista, as letras voláteis esperam por mim nos socalcos onde pendem os finais das frases, o desfiladeiro de um parágrafo, o grito no vazio da falta de obstáculo e objectivo. Há por aqui vida. E nem o sabia. Que fazer, além de deixar que me escreva a simplicidade genuína de quem nos desarma quando a vida se lhes faz às prestações? Para escrever não há pregões. Apenas silêncios. E soluços abafados na face voltada às emoções. Em poucos minutos, entre estratégias para dar forma ao roupeiro no exíguo espaço, fico a saber de mais de três décadas de vida com o sofrimento pendurado ao pescoço, como o avental. Um casamento com o mal. A sofrida ausência de um carinho quando nem por aqui sabe o bem caminho. Não sou digno, sequer, de entrar em tal morada.
A cozinha feita sobre a varanda onde fora outra cozinha. O chão nu de carvalho roído pelo bicho. As janelas folgadas onde o frio não entra por respeito, as portas retesadas de um verniz quebrado, os amarelados rendilhados alraiolados de um clube pendem porque lá não chega para retirá-los. Ofereço-me e desaperto a cangalhada. Os três fogões alinhados, o Sol que entra pelas frestas de um telhado voltado ao frio. “Herdei-a do meu tio”, quase como desculpando-se, “tomei conta dele e da mulher vinte anos. Acamados”. “É uma vida”. “Fizeram um testamento e deram-ma”. As frases saem monocordicamente, como legendas de um episódio de uma ficção profundamente real. Aceno na justeza da decisão familiar, “criei os meus ali em baixo, naquela” (a casa de pedra sobre pedra cimentado pelo vazio) “casei os quatro e não fui a nenhum casamento”. “Estive casada trinta e sete anos, para nada, só fiquei com dívidas, mas lá o mandei embora, já chegava”. Ofereço-me para pendurar o varão do cortinado no quarto, agradece-me enquanto me mostra as fotografias dos filhos num baptizado “olhe que o rapaz deve ser da sua altura” gaba-se. “Tenho um companheiro. Viúvo. Não fui para casa dele, veio ele para aqui, é melhor assim”. Sorrio anuindo, “fez muito bem” remato sem saber o que dizer enquanto arrumo instrumentos e também o coração, que já me tinha caído aos pés.
O sábado, assim como esta folha, obedece ao confinado espaço onde deitar aquilo que me faz soluçar. Apesar das mãos cheias do que não me sobra remato a narrativa e meio dia escorrido pela fronte. De sorriso garboso despediu-se num “Vá com Deus!” e, epilogamente, solta um ligeiro “há que ter fé, um dia tudo fica melhor”.
Sorrio emocionado. Já me esquecia… hoje é dia do Senhor.
Nada como fazer variar os passos nas direcções que nem eles sabem seguir. Talvez por isso, deduzo, daí nasça a expressão “o caminho faz-se caminhando”. Há a cada restolhar da vegetação o desconhecido animal que se esconde nas sombras que os meus olhos não iluminam. É a noite, felizmente, na pardez do passeio que orla o ribeiro alcatroado onde a pressa se apressa e o claquear das tampas de saneamento parecem o esgrimir das agulhas com que a minha mãe fazia pequenas indumentárias de lã para crianças, e um dedo por cima a colocar mais fio, em troca de um trocado que tanto valia como sentimento de independência, como de migalhinhas se faz pão, acumulando ao que a vida simples nunca precisou.
Desisto de caminhar pela estrada, até porque esta constante rememoração do que habita em mim e de certa forma constrói o meu passado neste hiato de tempo, está a tornar-me desleixado e a velocidade com que a pressa passa por mim poderá nem se aperceber da figura negra que vai sombreando a escuridão rarefeitamente estrelada. No primeiro entroncamento os paralelos apercebem-se dos meus passos, um candeeiro esbate a luz amarelada em sinal de boas vindas e eu sorrio, ainda que seja a cura para tudo, é a mais eficaz forma de emulsionar o que me rodeia. É campo na aldeia.
O estendal improvisado no arame da videira, agora despida, atravessa o terreno como uma série de bandeiras da nação de um homem são, a roupa pendurada veste a noite nua. À porta de madeira, fazendo companhia ao ferrolho encarquilhado, uma cruz de sobreiro, acastanhado, assinala a cruz, do que se ama, do que se carrega. A casa com as pedras religiosamente alinhadas, sobre elas mesmas pousadas, deixam passar pelas fendas o frio da noite acompanhado do meu olhar, permitindo que veja um fogo aceso de labaredas sorridentes e oscilantes e um mocho de cortiça onde um vulto, acabado de atravessar a parede, se senta e faz companhia ao velho tição que resiste ao dia para ver chegar-lhe a noite aos olhos e aos ossos, enquanto o carro ao longe, sob o telhado de zinco, se acomoda o melhor que pode descansado das viagens que já não sabe fazer.
A vantagem de novo percurso é ter os pés a perguntarem, a cada encruzilhada, que curva deve ficar para trás. A ruralidade é um tufo de resistência verde carrajó entre ermidas, cafés, bombas de gasolina, casas geminadas e por vezes germinadas. Alastra-se como uma mancha de sujidade numa toalha de linho a presença humana, novos caminhos sobre a velha terra que resvalam para o ribeiro apertado, escorrido, erguem-se olhares desconfiados para este tomba-lampiões que atravessa a noite e sussurra – boa noite – sem que o sussurro traga volta. Não há confianças a estranhos. A casa nova, dois pisos, a opulência de uma arquitectura distinta tenta envergonhar o casebre anterior, a porta da garagem automática assemelha-se a alguém que se abre sem ter coração. É. Somos apenas ilusão. A lavandaria pariu uma bacia de roupa seca, cheirosa, quase quente, que nunca vestiu a noite. E no piso de cima um fogo apagado nas labaredas por detrás de uma redoma de vidro onde o calor não aquece o frio de quem se esquece que para entrarmos na vida temos que ter o corpo vazio. Como eu, na distância entre o que sonho ao que sorrio.
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